por Miguel do Rosário, O Cafezinho
A história de Claudio Marcello Enzo Tortora (1928 – 1988) oferece um alerta fundamental para os riscos da instituição da delação premiada, sobretudo em países onde a comoção pública parece se converter em linchamento, pressionando promotores e juízes a condenarem mesmo sem provas.Aconteceu o seguinte.
Às quatro e quinze da manhã, do dia 17 de junho de 1983, o famoso apresentador de TV, Enzo Tortora, acordou ao som de fortes batidas em sua porta, no hotel em que vivia em Roma.
Eram "carabineri", a polícia italiana, que vinham lhe prender.
Tortora havia sido acusado de envolvimento com a Nova Camorra, uma das máfias mais poderosas do crime organizado italiano.
Em maio de 1982, o parlamento italiano havia aprovado a chamada "legge sui pentiti", a lei dos arrependidos, que previa redução da pena a quem se dispunha a colaborar com o Estado na luta contra o terrorismo e a criminalidade organizada.
Então, um presidiário ligado à máfia acusa Enzo Tortora de fazer parte do grupo, operando no tráfico de cocaína.
Tortora apresentava um programa do tipo bem comercial, em que os telespectadores enviavam produtos excêntricos, para que fossem leiloados ao vivo.
Um presidiário, ligado a Camorra, enviou um jogo de bordados que ele mesmo tinha feito, para o programa. Passado vários meses, o presidiário começou a escrever cartas perguntando o que tinha sido feito de seus bordados. A produção do programa pediu que o depósito fosse vistoriado, mas eles não foram encontrados.
Tortora, então, escreve uma carta ao camorrista, relatando o extravio do material e propondo uma indenização pecuniária.
O camorrista irá, em seguida, usar esta carta para incriminar Tortora, dizendo que ela vinha escrita em linguagem cifrada, e que o bordado significava drogas, e que a oferta de dinheiro relacionava-se à quantia a ser paga.
Quando Tortora se defende perante o juiz e imprensa, que acompanha o caso em tom sensacionalista, jurando que não conhecia o delator, o presidiário mostra a carta, como prova que eles mantinham contato.
Uma sequência de fatos se desencadeia em desfavor de Enzo Tortora.
Outros mafiosos, que ouviram a história na TV e a leram nos jornais, resolvem também delatar Enzo Tortora.
No apartamento de um dos delatores, a polícia encontra uma agenda onde se lia o nome "Tortora", ao lado de um número telefônico (em seguida, seria comprovado que o nome certo era Tortona, não Tortora, e que o número de telefone não era do apresentador).
Os jornais caem em cima de Tortora, sem piedade. Longos editoriais, artigos, crônicas, charges, são publicadas contra o pobre apresentador, que esbravejava inutilmente sua inocência. Raríssimos intelectuais saíram em sua defesa. Certamente, os que entendiam ética também como respeito absoluto as direitos individuais, onde se inclui o direito à dignidade, contra o Estado, a mídia e as massas.
Sua única defesa, perante tantos delatores lhe acusando, era que todos eram bandidos, e sua palavra não merecia fé.
Aí aparece um pintor, sem ligação com a máfia, afirmando que tinha visto Enzo Tortora vendendo cocaína num banheiro de uma festa VIP.
O tal pintor vai a todos os programas de TV possíveis.
A casa caiu para Enzo Tortora.
Ele não tinha mais como se defender.
Juízes e procuradores também usaram o caso para se promoverem.
Enzo Tortora, já visto por uma parcela da opinião pública como uma vítima de um judiciário negligente, mas ainda não absolvido pela Justiça, foi eleito deputado do parlamento europeu por um partido da nova esquerda italiana, o Partido Radical.
Mesmo eleito deputado, Tortora perdeu os últimos recursos a que tinha direito, e foi condenado a tantos anos de reclusão, logo convertida para prisão domiciliar. Ele renuncia ao parlamento europeu para cumprir a pena.
Anos depois, tudo começou a ruir.
Era tudo mentira. O pintor apenas queria aparecer. Descobriu-se que ele já tinha sido condenado, em outras ocasiões, por fazer acusações falsas.
Os mafiosos queriam apenas se beneficiar da delação premiada, e escolheram Enzo Tortora como um alvo perfeito. Era um cara importante o suficiente para fazer bonito junto à promotoria. E era inocente, ou seja, eles não denunciavam nenhum perigoso figurão da máfia, que naturalmente não ficaria satisfeito em ser delatado.
Ao cabo, um novo julgamento é realizado, e Tortora é totalmente absolvido.
No documentário, é comovente a cena do advogado de Tortora chorando copiosamente com o fim de um pesadelo de oito anos.
A delação premiada é o pesadelo dos advogados, que vê seu cliente ser acusado sem que seja apresentada nenhuma prova.
No Brasil, a instituição da delação premiada, que pode ser importante em alguns casos, está se tornando uma verdadeira panaceia, e a comunidade jurídica e política devem se insurgir contra a tentativa de torná-la em instrumento do arbítrio, sobretudo se manipulada inescrupulosamente pela mídia.
N. do E.
- A comoção na Itália e a vergonha na opinião pública foram tão grandes, quando se deu conta do erro, que foi realizado um plebiscito para aprovar uma lei, impondo penalidades a juízes e promotores que cometessem arbítrios contra cidadãos italianos, como cercear o direito à defesa ou agir deliberadamente, sem a devida imparcialidade, para culpabilizar o réu. O plebiscito teve mais de 80% de aprovação.
- Uma biblioteca em Roma, uma praça em San Benedetto del Tronto, um largo em Milão, uma galeria em Gênova, uma rua em Nápoles e outra em Mondovi e o foyer de um teatro na Itália receberam o nome Enzo Tortora, em homenagem a ele.
- A história desta vítima da malagiustizia foi transformada várias vezes em filmes para o cinema e a televisão.
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