21 agosto, 2020

Um dia por vez

"O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma. Confrontados com a ausência de tudo, os homens abstêm-se do sonho... Existe, no nada, essa ilusão de plenitude, que faz parar a vida e anoitecer as vozes." (Mia Couto, "Vozes Anoitecidas")

O ser humano sempre se preocupou com o tempo. Creio que a grande interrogação existencial da humanidade sempre foi: o tempo passa ou somos nós, e todas as coisas, que passamos? E tudo passa ao longo do tempo - que passa? - como se existisse uma coisa chamada "tempo".

Talvez se deva ao efeito do nascimento, crescimento, envelhecimento e morte, bem como da sensação de o tempo passando quando comparado ao equivalente do nascimento e morte do sol, tornando bem nítida a sensação de "dias" passando. Ou seja, o sol ensandecido pela beleza da lua fica correndo atrás dela sem parar, sem alcançar e sem descansar, e a o ser humano tem esta bela convenção de dias e noites passando.

Quando o sol ilumina o lugar onde estamos, temos a sensação de que "nasce" mais um dia luminoso, e, quando sol se vai, dando a sensação de que o dia "morreu", a lua aparece porque ainda continua recebendo a luz do sol. E isto acontece ininterruptamente, não importa a nossa percepção de que, como dizia o poeta "É preciso amar as pessoas / Como se não houvesse amanhã / Por que se você parar pra pensar / Na verdade não há".

Esta sensação de não haver outro dia parece estar presente nos sentimentos mais profundos daqueles que são diagnosticados com doenças gravíssimas. Já ouvi, algumas vezes, de amigos ou conhecidos que foram diagnosticado com câncer, dizerem que tinham poucas esperanças, viviam um dia após o outro. E mais nada. E a solidão era uma constante. Perguntados como estavam, ouvia-se a frase pronunciada de forma bem triste: "Estou bem. Aprendi a viver o dia de hoje. Mais nada."

Esta percepção quase palpável de que a perspectiva é de que não haja nenhuma perspectiva passamos a ouvir nesta pandemia. Já ouvi, de março para cá, alguns parentes e amigos, ao serem perguntados como estão passando, repetindo a frase com tristeza: "Ah, meu amigo, aprendendo a viver um dia por vez."

Fernando Gurgel Filho

Um comentário:

Unknown disse...

Grande contribuição do economista Keynes: o aumento da incerteza (em relação ao futuro) paralisa o sistema econômico!!