(tirinha de André Dahmer)
Um slogan tem feito sucesso na parcela mais conservadora da sociedade brasileira, e ele se baseia num jogo de palavras: “direitos humanos para humanos direitos”.
Tanto “direito” quanto “humano” são palavras com dois sentidos. O dicionário Houaiss apresenta mais de 30 acepções para a palavra “direito”, sendo 12 como adjetivo (justo, correto, de acordo com os costumes, de conduta impecável, que segue a lei e os bons costumes, honesto) e as outras como substantivo, dentre as quais sobressai a designação da área (do campo) que estuda as leis (formado em direito, p. ex.). Outros sentidos são “regalia, privilégio, o que é facultado a indivíduos ou grupos por força de leis ou costumes, prerrogativa”.
O sintagma “direitos humanos” não aparece entre os exemplos, o que não deixa de ser estranho, porque há 70 anos esta é certamente uma das expressões de maior circulação, pelo menos no ocidente dito civilizado, cujo objeto é alvo de muitas discussões, de embates e de políticas concretas (ou de sua ausência).
Considerados esses registros, a interpretação do slogan deveria ser objeto de uma hermenêutica cuidadosa. As perguntas são “o que são humanos?” e “o que são “direitos?”.
No sintagma “direitos humanos”, “direitos” é um substantivo (e plural, indicando que há mais de um). Seu sentido está próximo de “prerrogativa”, indicando que se trata de algo característico ou exclusivo da espécie (quem é humano deve ter X prerrogativas): o que quer dizer que não lhes pode ser negado o acesso à igualdade, à liberdade, à saúde. “Regalia” e “privilégio” conotam certo exagero, ou o fato de que certo “direito” é de fato uma excrescência.
O sentido de “direito”, neste uso, é restringido por “humanos”: trata-se de prerrogativas da espécie, que não necessariamente se devem às outras (animais, vegetais) – questão mais aberta, hoje, dadas as teses da preservação.
Em “humanos direitos”, “humanos” funciona como substantivo (como em verdes / vermelhos) e seu sentido é restringido por “direitos”. Vale dizer: as tais prerrogativas não devem ser estendidas a todos os indivíduos da espécie humana, mas apenas àqueles que são “direitos”. “Direito” se define, seguindo os registros do Houaiss, como “de acordo com os costumes, de conduta impecável, que segue a lei e os bons costumes, justo, correto, honesto”.
As acepções dão margem a alguma indeterminação: ser direito é seguir os costumes? Mesmo em regimes escravocratas? Mesmo em sociedades com legislação machista, homofóbica ou racista? Outra acepção talvez explique um pouco melhor a questão: “que segue ... os bons costumes” (porque a lei pode não ser justa). “Bons costumes” parece melhorar um pouco a definição. Mas o que é um “bom” costume? Sabe-se que a sociedade se divide em questões como essa, mesmo se aplicada ao campo da política, mas especialmente ao da moral.
De fato, se nos valermos da memória (como é o caso de veste azul e veste rosa), veremos que “direito” (em “humano direito”) se associa a heterossexual, que não tem dívidas com a justiça, independentemente de como isso é conseguido; e se associa também ao “homem macho”, excluindo o homossexual. Eventualmente, até a mulher, sempre suspeita – claramente como a que não tem os mesmos direitos que os homens. Exclui o pobre, a não ser o submisso (um grevista não é muito direito...) e, claro, no lugar mais “baixo” da escala, exclui o negro, de qualquer gênero. Afinal, quem não desconfia do mal vestido que passa perto de sua casa? Ou do negro que pede ajuda no portão? Eles têm “uma cara” da qual desconfiamos...
A partir desta semana, talvez um humano direito seja o sujeito que comprou ou pensa em comprar uma arma de fogo. Ou quatro, se for um cidadão de bem.
Extraído de: Quando a ordem, ou a desordem, das palavras altera o seu sentido, por Sirio Possenti. In: Rede Brasil Atual
Sirio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
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