22 abril, 2016

Num monumento à aspirina

João Cabral de Melo Neto
Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
JCMN: 50 anos de aspirina
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
* * *
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.
(Em: "A educação pela pedra" - 1966)

"O poeta João Cabral de Melo Neto, falecido em 1999, transcorreu parte de sua vida sob a tortura de uma terrível enxaqueca. Há mais de um depoimento sobre ele que comenta esse aspecto de sua biografia. Não foi para menos, portanto, que o pernambucano dedicou uma verdadeira ode àquilo a que ele sempre recorria para aliviar sua cefaléia e, com a cabeça mais leve, então arquitetar intrincados poemas. O poema "Num monumento à aspirina" produz, já pelo título, um certo estranhamento no leitor, dada a combinação, meio estrondosa, dos substantivos "monumento" e "aspirina". Pois, em geral, fazemos monumentos às coisas grandes, aos acontecimentos e personagens históricos de relevo. Mas a uma aspirina, a um prosaico comprimido antipirético..."

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