05 maio, 2020

Fazendo o seu melhor

Fernando Gurgel Filho
Um nosso amigo estava com voo marcado para este período em que entramos de isolamento por causa do coronavírus. Recebeu o célebre comunicado de cancelamento: "Seu voo foi cancelado, confira suas opções." Como todo bom consumidor otário, foi conferir "suas opções". Ligou para a companhia. Uma hora de musiquinha e uma voz do além listou as tais "opções". Não está explícito, mas as opções existentes pareciam dizer: digite 1 - para se desesperar; digite 2 - para gritar bem alto, "Mããããããêêêêêê”, mesmo sabendo que ela morreu; digite 3 - para xingar, chorar e deixar por isso mesmo; digite 4 – para aceitar que não tem opção nenhuma, tem que escolher o que não lhe interessa; e, depois de uma hora de "opções" digite 99999999 - se quiser mandar todo mundo à pqp; ou aguarde para falar com uma de nossas atendentes. Mais uma hora de musiquinha e a voz do além informa: "Sua ligação é muito importante para nós. Logo você será atendido. Você é o número 524 na fila de espera. Não desligue, por favor". Se o pobre consumidor ainda não morreu, só resta desligar aquilo. Mesmo porque, não falam NUNCA em devolução do seu suado dinheirinho.
Então, se, em épocas normais, você já não representa muita coisa como consumidor, em épocas de crise, quando as relações de consumo viram um pesadelo, a única opção válida é relaxar e tentar fazer o seu melhor, mesmo que o seu melhor não seja lá melhor do que sempre foi: péssimo.
Mas, em isolamento, o nosso amigo se superou em falta de habilidades. Não resolveu o problema do voo e ficou com os seus problemas costumeiros. Como é meio hipocondríaco, se alguém falar em falta de ar ele já precisa urgentemente de um tubo de oxigênio. E os telejornais somente falam em coronavírus, problemas pulmonares, número de infectados, número de mortos etc. E ele, ainda por cima, é meio elétrico, não pode ficar parado um instante. E todos conhecem sua habilidade para fazer as coisas: zero.
Não sei como resistiu tanto tempo, mas no nono ou décimo dia de isolamento social, ele já começou a espirrar, o nariz entupiu e a tosse veio muito forte. Fez uma ligação para seu otorrino de confiança. Este receitou antialérgico, antibiótico e um outro remédio. Falou para NÃO se preocupar E enfatizou bem o "NÃO". Nem febre ele tinha. Aquilo era apenas sua costumeira crise de sinusite. Mas o nosso amigo não se conformou. Achou que estava morrendo. Ao anoitecer, na cama, chamou a esposa: - Benzinho, chama o filhote. Vou passar todas as nossas senhas, de cartão/banco/etc., e orientá-lo como deve proceder. Ele vai precisar disso para resolver as coisas na nossa ausência.
- E você vai pra onde, posso saber?, quase gritou a esposa, já nervosa com a situação.
- Pro saco, ironizou, tossindo. E você também, pois o vírus é muito contagioso e estamos sempre juntos. Melhor deixar tudo resolvido e facilitar a vida de quem fica.
- Ora, vá se catar!, berrou a esposa, amanhã você resolve isso. E saiu batendo a porta porque sabia que, no outro dia, ele já tinha esquecido aquela maluquice. Realmente, com os remédios a sinusite melhorou e tudo voltou ao normal. Ou quase.
Já muito melhor, resolveu cortar o cabelo do filhote, que estava trancado em casa com eles, sem aula. Procurou um tutorial na internet: "Como cortar cabelo masculino em casa". Apareceu um monte de opção. Achou fácil. Basicamente, bastava ter uma tesoura, um pente e alguma habilidade. Que lhe faltava, mas achava que lhe sobrava.
- À tarde vamos cortar esta juba, falou, animado, para o moleque.
Cortou. Até que não foi muito difícil, mesmo. Quase destruiu o cabelo do moleque. Que, após o corte, na frente do espelho, chorava e urrava de ódio: - Mããããããêêêêêê, vem ver o que meu pai fez no meu cabelo!
Naquela pandemia a casa virou um pandemônio. E não adiantava querer melhorar o trabalho. O corte mal feito só piorava. O jeito foi deixar como estava:
- Desculpe, filhote. Tentei fazer o meu melhor. Não deu. Mas o cabelo cresce rápido e antes de voltarem as aulas você vai ao barbeiro. Eu prometo.
Depois de todo mundo chorar juntos, abraçados, tudo voltou ao normal. Ou quase, pois o nosso amigo não sossega dentro de casa. Alguma coisa nos diz que, na tentativa de fazer o seu melhor, sua próxima ação será ainda pior.

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