20 setembro, 2015

Portugueses na África

Crônica inédita de Lima Barreto encontrada na Biblioteca Nacional
A crônica "Portugueses na África", escrita por Lima Barreto – provavelmente em 1907 –, nunca foi publicada; nem mesmo na coluna "Echos", da revista A Floreal, à qual ela se destinava, segundo indicação do autor no verso de uma das folhas em que foi escrita. O original foi encontrado recentemente numa pasta do Arquivo Lima Barreto – que está preservado na Divisão de Manuscritos – pelo doutor em "Estudos Brasileiros (Literatura e Cultura)" pela Universidade de Lisboa, João Marques Lopes, hoje bolsista do Programa Nacional de Apoio a Pesquisadores Residentes (PNAP-R), da Biblioteca Nacional. João Marques Lopes estuda o modo como a obra de Lima Barreto, um dos mais importantes escritores brasileiros, foi recebida em Portugal.
Os srs. já conhecem a coisa. De ano em ano, os jornais daqui e de além-mar noticiam estrondosas vitórias dos portugueses sobre os indígenas de suas possessões de África. No tempo dos “Lusíadas”, talvez por não existir o jornalismo periódico, não davam tanta importância a feitos idênticos. Pelo menos não tenho notícia que Lisboa festejasse retumbantemente Antônio Salema, que, aí pelos fins de Quinhentos, matou dez mil índios perto de Cabo Frio; e se ainda nos resta memória das proezas da gente assinalada em Diu e Goa é porque alguns cronistas precavidos e meia dúzia de poetas entusiastas registraram-nas em prosa de bronze, ainda áspero, e em grandiosos versos, um tanto monótonos.
Hoje, não havendo farta messe de ações heroicas, lá pelo velho Portugal, os jornais e o governo não deixam escapar uma só vitoriazinha. Os heroísmos são narrados um a um, em frases cheirando ainda à Ilíada; os retratos são publicados e os plutarcas afiam a pena para mais essa centena de varões ilustres.
O que há em suma? Esta coisa simples: um destacamento português, de cem ou duzentas praças, derrota uma partida de desgraça dos negros, duplamente desgraçados por serem negros e por viverem em possessões do Portugal necessitado de vitórias.
Pelo jeito, o governo lusitano precisa demonstrar a vitalidade da nação; precisa lembrar ao mundo que o sangue heroico dos varões assinalados ainda não está de todo acabado; e para tal organiza, de quando em quando, umas justas art-nouveau em que morrem algumas dezenas de negros (ora, os negros!) e os portugueses praticam heroísmos dignos de versos gregos e do triunfo romano.
Tenho para mim que esses negros flexíveis e adaptáveis a toda a sorte de misteres, desde o de bestas de carga até o nobilíssimo de adversários dos esforçados varões do Portugal moderno, têm que acabar um dia. Se isso se der, a velha metrópole vai se ver atrapalhada para arranjar quem se preste à demonstração experimental de sua heroicidade eterna; e, a menos que a gente a quem outrora Marte obedeceu queira combater os chimpanzés e os gorilas de África, Lisboa só terá festas com franco cunho guerreiro quando o governo das Necessidades sabiamente resolver condecorar com grandiosas solenidades os valentões da Baixa que se portarem heroicamente nas rijas com tripulações de barcos estrangeiros de passagem pelo Tejo. Então é que havemos de ver o indigesto Teófilo a explicar esse afloramento do Heitor português na população da sarjeta alfacinha e o velho Camões a bimbalhar nas colunas dos jornais:
Cale-se de Alexandre e de Trajano,
A fama das vitórias…
E poderá assim Portugal, e por muito tempo, achar nos seus registos de nascimento, nomes que se possam contar naqueles outros em quem, como o Albuquerque terrível e o Castro forte, a morte não teve poder.
É ainda de Camões que, a meu ver, deve sofrer modificações convenientes para se adaptarem ao novo heroísmo de Portugal, se os nossos irmãos do Tejo querem um adaptador excelente, temos aqui à mão alguns experimentados em guerra. O Barão de Paranaguá calha, por exemplo…
N. do E.
[1] Extraído de: http://www.bn.br/noticia/2015/09/cronica-inedita-lima-barreto-encontrada-bn
[2] A ortografia foi atualizada.
[3] Grato a Fernando Gurgel pela informação sobre a descoberta do original desta crônica no Arquivo Lima Barreto da Biblioteca Nacional.

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