02 outubro, 2015

Terra Sonâmbula

"Mas Junhito ainda lutava para se desbichar, desembaraçar-se da condenação. Me veio à ideia que ele precisava de um pouco de infância e cantei os embalos de nossa mãe, sua última ponte com a família. Enquanto eu cantava ele se foi vertendo todo gente, completamente Junhito." ~ "Terra Sonâmbula", Mia Couto

Leio "Terra Sonâmbula" como um livro de sonhos, onde o autor nos mostra duas coisas muito humanas: a prisão que o medo provoca e a busca da felicidade possível.
É difícil avaliar o quanto de superstições e preconceitos, medos enfim, existem nos relacionamentos humanos. E essas superstições e preconceitos estão em toda a obra. Como, por exemplo, quando alguém chega a um povoado, por nascimento ou como viajante e, por um acontecimento qualquer – falta de chuva, morte de um outro ser humano... –, passe a ser visto como um ser maléfico, que trouxe infortúnios, tragédias e má sorte para a comunidade.
Parece impensável uma tal situação. Talvez, porque impensáveis são as superstições e preconceitos dos outros. Impensáveis são os medos que o outro cultiva. Os nosso, não. São muito normais para um ser humano. Mas o outro está fora da nossa humanidade. Nossos medos, superstições e preconceitos transformaram-no em bicho.
Como, então, desfazer essa maldição humana, fazendo o ser humano voltar a olhar o outro como um ser humano? Talvez lembrando os laços que os unem fraternalmente na infância e à primeira comunidade que conhecemos. inicialmente, o aconchego e a proteção do útero materno e, depois, muito depois, da família.
Como um dia esse aconchego e proteção acabam, o ser humano busca nos sonhos uma libertação para seus sofrimentos e prisões. Nos sonhos o ser humano tenta se libertar dos "desprazeres" da existência para sentir os "prazeres" possíveis.
Mas a felicidade possível é o sonho do caminhar na estrada difícil da existência. Não é uma felicidade como um fim. É a felicidade como meio de se viver, quando a vida não tem mais valor, nenhum amparo e nem futuro possível. É a vida destroçado pela guerra. É a vida de todos nós.
É a felicidade que se descobre quando ainda resta "um pouco de infância", uma "última ponte" com um passado que nos fazia feliz, uma réstia de felicidade do sonho... O que nos leva a concluir que essa recordação é a única que pode desfazer a maldição humana, nos levando a "desbichar" até que possamos ir nos "vertendo todo gente".
Segundo Freud "Esse homem encontrou a felicidade ao descobrir o tesouro de Príamo, o que prova que a realização de um desejo infantil é o único capaz de proporcionar a felicidade" Sigmund Freud, citado por Raymundo de Lima e Marta Dalla Torre Fregonezzi, no artigo "A Felicidade existe? – Freud, a psicanálise e a felicidade".

Fernando Gurgel Filho

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