09 novembro, 2018

Valor literário

por Alberto Lins Caldas (*)
Como saber se um texto tem ou não "valor literário"? Como saber se um texto é realmente literário ou não passa de uma impostura? A gramática (normalmente o gramaticamente "correto" carrega uma boa dose de servilismo!) não pode ser aquilo que vai decidir sobre o "valor literário": a gramática é um ordenamento de poder, um círculo do já feito, do conhecido e reconhecido: a literatura vai sempre além desse círculo e seu limite; a língua também não pode decidir: a literatura é indiferente à língua: ela é somente seu suporte: não importa em qual língua a virtualidade literária se configure: ela não marca essa virtualidade; a região também em nada afeta o nascimento ou florescimento de uma obra, podendo, quando muito, fazê-la definhar por enquadrá-la a um pequeno significado vivencial, a um comodismo provinciano; uma tradição também não pode servir de parâmetro literário, pois a literatura sempre se fez a um passo depois das tradições, apesar de servir-se delas como nossa fome de um suculento pedaço de carne; gênero também não interessa: a grande literatura não pertence a nenhum gênero específico: não existe literatura negra ou branca, heterossexual ou homossexual, macho ou fêmea, moral ou imoral, infantil ou adulta, desenvolvida ou subdesenvolvida, prosa ou verso: o que há é literatura ou não literatura (parece que ninguém mais sabe o que é literatura e qualquer um que escreve é chamado de escritor); a história da literatura também não pode contribuir: as obras nascem sempre antes das outras obras de uma história: a origem de uma verdadeira obra literária é sempre anterior as suas "influências"; a economia também não resolve a questão: as classes sociais, a riqueza, o capital, a exploração, a mais valia, o roubo, o poder, a miséria, a história, os partidos, a política, o governo: nada disso cria ou impede a criação de uma grande literatura ou de uma grande obra: o "valor literário" não é uma conseqüência, em última instância, das determinantes econômicas. Então como saber se uma obra tem valor literário ou não?
Todas as obras de real valor literário possuem algo em comum: todas elas partem, sempre com um espírito de negação, de uma filosofia (F), de uma estética (E) e de uma visão de mundo (V) e constituem, em seus labirintos, uma visão de mundo própria, uma outra filosofia e uma nova estética: mas esses elementos só servem naquele universo, naquelas obras específicas: dali não nascem mais obras, a não ser como pastiches, reproduções de segunda mão, como em quase todas as obras provincianas: são reproduções simplificadas dos esquemas, das visões, das facilidades visíveis de uma obra, daqueles elementos que o poder difunde como qualidade e valor. Daí a misteriosa e espantosa multiplicação dos bilaquinhos, dos anjinhos, dos montelinhos, das lygiazinhas e dos coelhinhos: o que vemos aos montes em todas as províncias do mundo são pobres pastiches de algo que já foi feito e não poderia mais gerar nada a não ser a exaustão ou o delírio das críticas literárias, que fazem a festa exatamente sobre as FEV geradas pelas obras.
Mas ainda mantemos o mesmo problema: como saber se um texto tem ou não "valor literário"? É um longo caminho. Toda obra realmente literária gera uma rede de galerias onde se formatam em movimento sua FEV: cria-se uma espécie de "virtualidade singular" e uma forma de "virtualidade social". Há um intrincado virtual que é preciso levar em conta antes das análises do leitor, da língua, do estilo, dos discursos, dos gêneros, das formas, das estruturas, das funções. Precisamos, enquanto hermeneutas da obra literária, pensar sobre a FEV que propõe. É a partir desses componentes (FEV) que poderemos estabelecer se uma obra, em seus fundamentos, é somente uma reprodução sem valor, porquê mil vezes dita e dita mil vezes melhor, de uma “escola” qualquer, de um “autor” qualquer.
Uma “obra limite” sem história, sem personagem, sem lugar, sem perspectiva, sem narrador, sem temporalidade pode estruturar uma FEV inigualável. Sua significância nascerá da importância não do estilo, não da gramática, não da tradição, não da língua, não do gênero mas da sua específica FEV. Esse é um começo porque nenhuma obra literária se resume a sua FEV. Mas é dela que retira toda a sua força, todo a multiplicidade que devora as outras obras e exige a multiplicação da leitura e da interpretação; é dela que nasce nossa admiração, nosso amor, nosso espanto, nossa busca, nosso desejo, nosso olhar, nossa leitura. Fazer literatura não é somente escrever, contar uma história, construir um estilo: é criar uma FEV, é constitui-la com toda a nossa singularidade, com toda a sinceridade, coragem e unicidade que nos for possível. Como essa FEV pôs ao seu serviço um estilo, uma gramática, uma tradição, um gênero, uma história, uma língua é a nossa grande questão. Uma virtualidade singular que, para existir, precisa de uma outra voz, uma outra forma, uma outra perspectiva.
Daí porque é impossível para o artista ser "normal" e escrever (ou pintar ou esculpir ou criar qualquer coisa realmente em arte). Gerar filhotes, obedecer à família, entender o governo, participar de um partido político, sentir-se honrado por estar trabalhando ou estudando, amar pai e mãe, amar uma mulher ou à mulher sobre todas as coisas, defender a pátria, chorar de emoção com a bandeira, respeitar alguma coisa, gostar daquilo que todo mundo gosta, assistir televisão, gostar de programas de auditório e novelas, ler os autores da moda, ler os autores respeitados pela "escola" e pela "academia", desejar aquilo que todo mundo deseja e tolices do gênero são sintomas de uma quase FEV massificada que está há muito estabelecida, servindo somente a um mundo ridículo e cada vez mais pobre e fascista. Um escritor é aquele que, antes de tudo e depois de tudo, cria uma FEV própria, singular, como maneira de ver, sentir, dialogar, desejar e sonhar, viver e morrer.
Aqui resolvemos a nossa questão? Não! Para desalinharmos um bom pedaço desses fios é realmente preciso muito caminho e muita tinta. Aqui é somente um dos mil começos de algo sem começo que tem seu fim exatamente em todos os possíveis começos.
(*) Pernambucano de Gravatá, onde nasceu em 1957. Publicou Canto Fundamental e Cacimbas. Colabora em jornais do Recife (Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio e Diário da Manhã) com artigos de critica literária e poesia. Fundador do grupo informal Poetas da Rua do Imperador. Cursou Historia e Arqueologia na UFPE. Ensaísta proustiano e poeta. 

Nenhum comentário: