13 setembro, 2014

A rede

Nas palavras da museóloga Célia Corsino, do IPHAN, “a rede é um dos patrimônios culturais brasileiros”. Sua certidão de nascimento está na Carta de Caminha. Escritores quinhentistas como Padre Anchieta e viajantes estrangeiros como Hans Staden e Jean de Lérye, além do notável orador português Padre Antonio Vieira falaram sobre a rede. Figuras emblemáticas da literatura histórica brasileira, como Câmara Cascudo, Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda também escreveram sobre ela.
Câmara Cascudo considerava Pero Vaz de Caminha o padrinho da rede, por ter sido o primeiro a registrá-la em língua portuguesa. Denominou-a rede, devido a à semelhança com a rede de pescar, sem perguntar-lhe o nome aos donos da casa.
"(...) e de esteio a esteio uma rede atada com cabos em cada esteio, altas, em que dormiam". – Carta de Pero Vaz de Caminha
Conta-nos Hans Staden que, uma vez prisioneiro dos tupinambás, foi levado à sua aldeia, sendo-lhe destinada uma rede (a que os nativos chamavam "ini"), na qual deveria dormir. Explica também que a rede era armada entre dois paus ou, quando em viagem, entre duas árvores. Essas redes por ele descritas eram tecidas com fios de algodão e, durante a noite, costumavam os índios manter uma pequena fogueira perto delas, tanto para aquecimento como para afastar insetos e animais peçonhentos.


Depois da farinha de mandioca, foi a rede o primeiro elemento de adaptação, acomodação e de conquista do português.
A manufatura das redes era ofício feminino e sofreu influência dos jesuítas. A rede era uma herança familiar e sua indústria era doméstica e tradicional. Era como se fosse parte do corpo do indígena, do mameluco e do sertanejo, sempre os acompanhando.
Inspirados nas liteiras, os portugueses também fizeram da rede um meio de transporte, de uso muito comum entre senhores e senhoras. A cama na Casa Grande era uma obrigação protocolar, dormia-se na rede.
Os negros de senzala nunca se adaptariam à rede, dormiam no chão. Senhoras brancas tentavam convencer a negra a usar a rede, principalmente após a maternidade. Quando a usavam desde meninos, os negros permaneciam fiéis à rede. Era comum dizer-se que "negro que não zela sua rede, não zela seu amo", além disso acreditava-se que o uso da rede amansava o escravo.
A partir de 1830, com a influência da moda francesa, a rede começou a sofrer uma campanha de descrédito, por estar associada à barbárie. Cascudo diz que usamos ao contrário a frase de Montaigne: "que chacun appelle barbarie ce qui n’est pas de son usage".
Com o declínio do uso da rede para dormir, principalmente nos estados do Sudeste, restou o uso da  rede para repousar.
Qualquer que seja a sua finalidade, “a riqueza plástica da rede brasileira, segundo Denise Mattar, "é surpreendente: tramadas em tucum, buriti ou carnaúba (como a "ini", a rede indígena) elas são transparentes e flexíveis. Tecidas em algodão industrial, rústico, naturalmente colorido, ou tingido, elas encantam pelos seus padrões. Bordadas em ponto cruz, richelieu, vagonite e até à maquina, cada rede é única e (ao mesmo tempo) uma criação coletiva, pois seu corpo é feito num local, as mamucabas, trancelins e punhos em outro, assim como as varandas e bordados”.
Na trajetória da "primeira peça do mobiliário brasileiro" está a sua exportação para a Ásia e para a África. Diz o antropólogo Roque Laraia: “Tudo o que é útil se difunde com extrema rapidez no mundo”, e foi o que ocorreu com a rede.

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