- Olhe por onde anda, descuidado - pensei. Mas o grito gêmeo do pensamento não chegou a aflorar. Segurei-o na garganta, assim que o estranho prontamente se desculpou por haver esbarrado em mim. E, sendo eu um pedestre costumeiramente desatento, até que ponto não havia também contribuído para o encontrão?
Mal se afastou o estranho, recompus-me. Os cabelos despenteados, as vestes em desalinho, os óculos mal armados no rosto...
A seguir, toquei-me em frente. Naquela rua de passantes tão apressados, outros esbarros que ocorressem. Sim, onde está o problema se todos temos as palavras corteses, os tapinhas nas costas e os sorrisos pré-moldados?
O meu receio é apenas o de que algum dia esbarre em mim mesmo.
(de 1980, reescrita)
29/06/2012 - Atualizando...O leitor fique certo de que os cientistas estão tentando melhorar esse estado de coisas, mas estão a fazer progresso a passos muito lentos.
How do pedestrians avoid collisions? In: The Guardian
O esparro
Na sala do meu apartamento de solteiro, como objeto de decoração, eu pendurei um tipiti na parede. O tipiti, para quem não sabe, é um cesto cilíndrico de palhas entrançadas, em cujo interior o caboclo da Amazônia põe a massa da mandioca ralada para ser espremida, antes de levá-la ao forno para que se transforme em farinha.
Não pensando em fazer agricultura de subsistência no apartamento, eu usava o tipiti ornamentado por uma planta do grupo dos filodendros: uma cara-de-cavalo.
Vivendo à sombra, e com uma modesta "ração" semanal de água, era uma planta realmente durona. Tirando algumas câimbras nas raízes, de que se queixava raramente, a cara-de-cavalo gozava uma saúde invejável enquanto iam tossindo e morrendo as sempre-vivas vizinhas.
Certa vez, uma visitante me sugeriu aumentar-se-lhe o viço, colocando anticoncepcional em sua água. Bem, acho que a cara-de-cavalo não gostou da absurda sugestão. Pois tive a impressão de vê-la a rir, com todas as folhas, assim que escutou o que eu respondi à intrusa.
Que ela e eu éramos apenas bons amigos.
(de 1980, reescrita)
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