25 outubro, 2020

Crítica da irracionalidade dura

por Fernando Gurgel Filho
Meu amigo calhorda-humanista sempre repete sua frase favorita: "O mundo nos dá tudo, pena que não podemos usufruir livremente de quase nada". E explica: "Isto porque, alguém já se apropriou do que necessitamos para a simples sobrevivência do corpo e para a saúde da mente. E ai daquele que tentar ter o que não puder comprar. Como muitos não podem ter acesso ao que necessita, o sonho de todo ditador é o controle total do ser humano." Creio que ele está certo. Muitas utopias foram imaginadas onde o ser humano pudesse usufruir de quase tudo, desde que a felicidade suprema dele estivesse em mãos dos que pudessem controlar tudo.
Ao invés de sociedades onde os humanos possam ter acesso à educação, cultura, bens e diversão; uma sociedade onde possam sonhar, imaginar e deixar seus sentimentos voarem livremente; a "solução" proposta mais facilmente sempre passa pela repressão desses desejos humanos, dessas "doenças" que têm que ser curadas eliminado-se simplesmente os sonhos, a imaginação e os sentimentos.
Porém, como diria H. L. Mencken: "Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada." (in "The Divine Afflatus", in New York Evening Mail (16 November 1917)).
Para mim, mesmo nas sociedades descritas como utopias, desde "A República", de Platão, passando pela "Utopia", de Thomas Morus, e chegando às sociedades religiosas e aos grupamentos humanos onde a igualdade deveria estar presente, o que se vê são sociedades onde a solução encontrada passa primeiro pelo controle total do ser humano. Então, mesmo descritas como a sociedade do sonho de muitos pensadores, utopias, para mim, são apenas distopias disfarçadas de sociedades justas e perfeitas.
O livro "Nós", do escritor russo Yevgêny Zamyátin, talvez seja uma das primeiras distopias de que se tem conhecimento. Ali estão todos os ingredientes das outras obras distópicas que lhes seguiram: controle total do Estado; massificação dos cidadãos, colocando-os em verdadeiras linhas de produção; repressão da liberdade de pensamento; vigilância constante dos cidadãos; supressão dos sentimentos, sonhos e imaginação, através de operações no cérebro; etc. Tudo isso para que o ser humano alcance, enfim, a tão sonhada felicidade.
Felicidade de quem, cara pálida? Dos controladores?

Ilustração de Clifford Harper

Em "Nós", o narrador, D-503, é um cientista que se sente feliz e confortável com a sua vidinha totalmente controlada pelo Estado, dentro de um padrão racionalista que lhe permite deduções lógicas de todos os seus atos e sentimentos. Porém, ao se deparar com os sentimentos despertados por uma mulher, I-330, compara a irracionalidade de seus sentimentos com a tentativa de se extrair a raiz quadrada de -1 (menos um). E entra em verdadeiro parafuso tentando manter sua aeronave (seu cérebro) no ar enquanto lhe falta sustentação para continuar seu voo de cruzeiro, como acontecia antes de conhecê-la.
Ora, números são símbolos, ou seja, representações de medições e contagens do que observamos. Em suma, o símbolo numérico negativo é apenas uma convenção que representa as grandezas afastadas de zero, em sentido contrário aos números naturais. Como se fizessem parte de uma realidade virtual ou paralela. Apenas isto.
Sentimentos, porém, são representações do que nos afeta através de nossos sentidos, bem como de nossos sonhos e imaginação. Chamamos de negativos os sentimentos que estão em oposição aos que nos são mais confortáveis. E estes que nos são confortáveis denominamos de positivos. Apenas não existe um "zero" de referencial entre elas e, assim, não são anuláveis como se fossem somente símbolos matemáticos. Infelizmente para o narrador de "Nós" e para todos "Nós", moradores de algum "Estado Único".
Em suma, sentimentos não são símbolos matemáticos. Para a raiz quadrada de números negativos, os matemáticos já encontraram uma solução, talvez não muito simples, mas elegante e "Nós" não sabemos se está correta. Para os sentimentos, nem os maiores filósofos, livres pensadores, artistas, cientistas, conseguiram algum tipo de "solução". Neste caso, reprimir os atos de liberdade e eliminar os sentimentos para atingir a felicidade - como no "Estado Único", do livro "Nós" - além de não ser uma solução simples, pois o cérebro tem reações muito complexas, não é nada elegante e, segundo todos os que tratam do assunto, não é uma "solução" e, portanto, está completamente errada.
E NUNCA funciona, mesmo porque haverá sempre alguém com novas soluções. Felizmente para os habitantes do Estado Único, felizmente para todos "Nós", sempre haverá alguém que pule o "Muro", que acredita em seus sonhos, em sua imaginação de mundos mais justos e em seus melhores sentimentos humanos.
Como diria I-330: "E que revolução é essa que você defende como última? Não existe a última, as revoluções são infinitas.".

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