Nelson José Cunha (João Monlevade - MG)
Quem não conhece um português de boteco, imortalizado nas anedotas, vingança do brasileiro colonizado? Cada nação escolhe o seu português. Para o espanhol, esse personagem obtuso vem da Galícia.
O americano elegeu o irlandês, o francês prefere o belga e o alemão faz do polonês o seu alvo de gozação. Deve ser uma necessidade nacional, ter alguém para descarregar aquele sentimento de inferioridade que mora conosco. É bom saber que existe alguém mais bronco do que nós. No Brasil é o português de anedota.
Imagino que estas escolhas tenham alguma razão lógica, pois os imigrantes citados nestes exemplos são, na sua maioria, pessoas simplórias nos seus países de origem e forçados a imigrarem, e assim preenchem com perfeição o estereótipo de que se necessita.
Mas o Eduardo desta história fica longe da figura do português convencional, a começar pelo nome, não é um Manuel ou Joaquim, mas Eduardo, terror das menininhas do Castelo. Era a região do Rio, onde eu morava. O Eduardo manejava um boteco, metido a restaurante, que costumávamos freqüentar; ficava nas imediações da Santa Casa. A especialidade da casa era frango assado.
Vinha gente de longe para provar da iguaria. A casa vivia sempre cheia de estudantes, atraídos pelo "pendura", cartão de crédito da rapaziada. Muito namoro e casamento começou ali, geladinha com frango assado na mesa e outras franguinhas esvoaçantes bicando os corações.
O Duquinha acabou fisgado por uma destas, motivo de inveja da moçada. Chamava-se Laura, uma tremenda franguinha. Como se vê, o nosso português não estava lá para piadas, oh pá !.
Laurinha gostava de usar minissaia e nós, de vê-la sentada.
- Senta Laurinha ! Era o que mais se ouvia.
Tínhamos pelo "portuga" um punhado de admiração e outro tiquinho de despeito, pois o filho da puta sempre tascava a mina mais cobiçada da casa com aquele sotaque malandro e conversa envolvente. Para completar era um galã e no xadrez nos vencia a todos. Gostava de literatura e se metia com versos. Fernando Pessoa andava pregado pelos cantos do boteco.
Certo dia, correu pela Faculdade a história que vou lhes contar agora. Estando o Eduardo ainda arrumando o balcão para o início da segunda jornada do dia, entrou um freguês bem apessoado carregando um pacote na mão. Não era um embrulho qualquer, tinha algo parecido a uma caixa de bombom "Garoto", disfarçada em papel ocre e enlaçado meticulosamente por alguém que valorizara o seu conteúdo. Por fora, levava um desses lacres em alto relevo feitos com cera vermelha - Coisa fina e responsável. Sentou-se e sem pressa pediu o que de melhor havia na casa, inclusive o vinho do Porto que o Duquinha reservava para clientes especiais. O que chamava atenção naquele sujeito era o seu cuidado extremado com o pequeno embrulho, sempre com uma das mãos pousada sobre ele como se asas tivesse e algum risco de voar. Aquilo intrigou o nosso Duquinha, pois o homem não largava o pacote nem quando ia ao quartinho. À menção de alguém que se aproximava da sua mesa, mudava o pacote de lugar como se quisesse protegê-lo.
Lá pelas tantas, depois de zerar o estoque de vinho, o dono do pacote perguntou por uma marca de cigarro que o Duquinha desculpou-se por não tê-la. Diante de tão indesculpável falta, o estranho levantou-se, foi ao balcão, curvou-se ao pé do ouvido do Eduardo e pediu que guardasse aquele pacote com responsabilidade e frisou bem a palavra RESPONSABILIDADE.
Como não podia passar sem aquela maldita marca de cigarro iria buscá-la nos botecos da vizinhança.
O Duca, honrado pela demonstração de confiança do desconhecido, tratou de tomar conta do pesado e valioso pacote com o cuidado de uma galinha com seus ovos. A demora do freguês o fez atender o restante da clientela carregando consigo aquele estorvo. Era incômodo, mas assim mesmo desfilava com um certo grau de orgulho, pois aquilo deveria ser alguma especialidade.
Vez ou outra saía até a calçada, espiava de cada lado para conferir onde havia se enfiado o dono da encomenda. Pô! Já estava chegando a hora de fechar e o sujeito não voltava. Não demorou para a freguesia tomar conhecimento da história e apelar pela abertura do pacote.
- Aaabre... aaabre.... aaabre... - retumbava o coral dos aflitos e gozadores.
O Duca finalmente cedeu à gritaria e preparou-se para abrir o pacote em meio à roda dos curiosos. Já tinha gente apostando que aquilo só poderia ser alguma caixa de jóias roubadas deixadas por acaso num momento de aperto. Mas o mistério só resistiu até a abertura do embrulho. Surgia, aclamada pelos presentes, uma rapadura para adoçar um pouco da ira do "portuga" diante da gozação da moçada.
Alguém comera e bebera nas barbas de Dom Eduardo e saíra sem pagar a conta. Assim fez-se a escrita e o nosso Duquinha recuperou o “prestígio” do português da anedota.
E a Laurinha ? Ai que calcinha!
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