10 setembro, 2010

Lagartixa azul


Um conto de Nelson José Cunha


O sono não veio como de costume. Pacheco foi tomado pelos insistentes pensamentos dos insones: Velhas lembranças da infância, saudade dos pais já falecidos e as luaradas onde conheceu Isabel. Um sono roubado e uma noite em claro têm sempre a sua serventia: Ajuda-nos a refletir e elaborar projetos de vida. Quantas decisões importantes já brotaram de noites assim?
A noite do insone é também a primazia dos ouvidos, todo sussurro é notado: A mariposa que se debate no lustre, o motor da geladeira que se faz notar, o namoro dos felinos no telhado e até o tic-tac do relógio de pulso. Os seres ignorados durante o dia mostram-se à noite para a audiência dos insones.
E foi acompanhando as batidas do relógio cuco que Pacheco alcançou o dia. Preparava-se para se aninhar no usual soninho do raiar do dia, quando Isabel entrou no quarto com um comprimido em cada mão.
- Toma logo que já está na hora de sair.
Estava combinado que Pacheco seria internado num hospital psiquiátrico para tratamento da dependência alcoólica. A primeira vez em cinquenta anos de vida que o nosso personagem entraria num hospital como paciente. Foram meses de relutâncias antes que ele aceitasse a desintoxicação. A insistência da mulher e as alucinações cada vez mais freqüentes fizeram com que concordasse com o tratamento.
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Tudo começou com a visão de lagartixas coloridas correndo pelo muro da casa. Havia-nas em vermelho sangue, amarelo canário e até umas poucas azuis, todas a lhe desafiarem o tino. Chamava então a mulher ou quem estivesse por perto.
- Vem ver, vem ver...
Mas as lagartixas não esperavam, desapareciam por cima do muro antes que a testemunha as visse. Pacheco desapontado insistia
- Tem sim, eu vi, eram duas, uma de cada cor.
Os olhares se cruzavam piedosos da evidente alienação do Pacheco. Ele, tão compenetrado, estava entregue nas mãos do delírio. O álcool é o bom veneno, pois entorpece antes de matar os amantes dos seus vapores.
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O compadre Amandito, o amigo das horas amargas, chegou para conduzi-lo ao Asilo de Parangaba. Pacheco entrou no carro e encolheu-se no banco traseiro da Variant. Era um homem derrotado. Rosto virado para a janela e o olhar preso aos seus pensamentos. Ainda duvidava da veracidade das alucinações. As lagartixas pareciam tão verdadeiras que até se lhe ouviam os ruídos das patas em movimento. Algumas chegavam a desprender o limo do muro à sua passagem. Outras nem coloridas eram, tinham mesmo a cor discreta de lagartixa. Para estas, todos tinham olhos de vê-las, mas as coloridas ficavam somente para a mente afetada do pobre Pacheco.
Chegando ao hospital, iniciou-se a típica operação padrão ao se internar alguém em hospitais públicos: Tratamento impessoal e frio como uma linha de produção de frangos congelados. Pacheco recebeu um pijama de saco e a usual injeção de calmante que lhe desarmou o esfíncter. Seguiu a pé pelo longo corredor, pingando xixi para desespero da faxineira que seguia atrás com pano e balde a praguejar e limpar. Isabel assistia à cena de longe, braços caídos e pernas trêmulas, vencida. Não resistindo à derrota do seu herói, chorou. O Pacheco que conheceu no vigor dos seus 18 anos, artilheiro do Ubajarense, mijava-se pelo corredor do hospital.
* * * * *
Chegando à casa, Isabel sentou-se na velha cadeira de balanço para refletir sobre o futuro e atribuir-se culpa pela desgraça do marido como usam fazer as mulheres honestas e apaixonadas. Estava em pensamentos e choros quando de repente surge uma lagartixa azul das maiores. A lagartixa parou, acenou a cabeça e partiu como um raio para desaparecer no alto do muro.
Refeita do susto, Isabel levantou-se para buscar a escadinha de abrir. Subiu e assomou ao muro para ver o quintal do novo vizinho. Havia uma oficina de lanternagem para automóveis. Ao funileiro que transitava por perto perguntou sobre a tal lagartixa azul. Ouviu então, a história mais deliciosa da sua vida: O rapaz, grande brincalhão, ao final de cada jornada, para não entupir o bico da pistola de pintura, adicionava-lhe um pouco de thinner e descarregava o seu conteúdo no muro e nas lagartixas que porventura passassem na hora. Poucas lhe escapavam ao riso e ao jato colorido
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Naquela mesma noite Pacheco dormiu em casa, enrodilhado nos braços de Isabel.

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