20 agosto, 2010

Piriá e a Rosa


Um conto de Nelson Cunha

Piriá(*), para quem não sabe, é um ratinho miúdo e frenético. Sonora palavrinha para apelidar pessoas igualmente miúdas e inquietas. Apelido bom é gosma de cheiro: sai a cola, mas fica o cheiro.
João Feliciano da Costa como nome durou até largar o bico, se tanto. O menino raquítico e elétrico recebeu quase de nascença o apelido que levaria para a vida adulta. Rosto encovado, mal disfarçado por uma barba rasa e esparsa como penugem de gambá. Tinha só quarenta, mas pareciam-lhe mais os anos denunciados por vincos profundos na testa e no arremedo de maçãs. Carregava ainda no cocuruto uma calvície tonsurada e cabelos brancos, na razão dois-por-um. Sobravam por cima das orelhas de abano. Dentes saltados e intrometidos nos lábios sempre abertos que lhe faziam sorrir a cara mesmo se circunspeto estivesse. Um piriá de almanaque.
Dizem que o Criador quando tira os dentes abre a goela, pois essa criatura recebeu uma garganta de jiboia por sua ambição desmedida e a esperteza de um macaco ladrão. Tinha argumentação fácil e a sagacidade dos safados. Enriqueceu, aprumou a vida, formou figura de homem de bem e se casou.
Pôde escolher moça com a fama de rico que ganhava da boca dos outros. Prestígio de bem forrado que encobria sua figura minúscula e desalinhada. Com os mil-réis no banco deixou de ser feio para ser rico. Escolheu Rosa, pai bravo, moça presa e de beleza comentada. Criada virgem para fazer bom casamento. Prendada, fazia de um tudo. Até rabeca a danada tocava. Tinha uma mirada afinada por um feitiço baiano herdado da mãe que veio do Recôncavo. Na missa flertava com muitos e depois escondia o olhar só para fisgar o interesseiro e se tornar o centro da atenção na saída para o adro. Ali ficava à espera da charrete. Desfrutava em gozo solitário dos olhares lascivos e numerosos. Era a hora dos beliscões das esposas ciumentas. Olhava por cima de todos só pra espinhar e ferir o orgulho dos rapazes pobres de Juiraçu. Pois foi ela a Rosa de olhos azuis infinitos que o mindinho foi buscar.
São muitos os casos que fizeram do Piriá uma fama de gente. Conto só dois para dar um gosto.
Certa feita, queixou-se para seu compadre Zelito que sua produção de goiaba naquele ano estava por cima do consumo da fábrica de geléia. Ao que seu compadre propôs que levasse dele oito porcos magros para consumir as goiabas perdidas. Ao final, mataria os porcos e dividiriam ao meio o resultado da engorda.
Quatro dias depois, retorna Sô Piriá trazendo o dinheiro de quatro porcos matados e vendidos.
- Mas como? - reagiu Zelito. Já vendeu?
- Os porcos não quiseram comer as goiabas e para não emagrecerem resolvi vender e dividir o lucro. Trouxe os seus cinquenta por cento, conforme o trato.

É de goiaba também o gosto do segundo caso. Piriá tinha uma fabriqueta de geleia de goiaba. Vendia tudo, menos pelo sabor e mais pelas propriedades medicinais alegadas pelo fabricante. Ferida, coceira, pereba, para todo mal de corpo, servia a geleia. Quando perguntado porque a geleia tinha aquele forte sabor de abóbora, respondia atrevido que punha abóbora para dar liga e puxar a cor, mas que só adicionava no tacho cinquenta por cento.
- Cinquenta por cento? - reagiam, indignados.
- Sim, cinquenta por cento.
E, virando-se para Rosa, dizia baixinho:
- Uma abóbora, uma goiaba, uma abóbora, uma goiaba.


Pequena aula de etnolinguística
(*) Piriá é a pronúncia popular, corrente em Minas Gerais e Goiás, para o dicionarizado preá, s. m. Zool. Nome da espécie de um pequeno roedor sul-americano (Cavea aperea), aparentado ao porquinho-da-índia (Cavea porcellus). Origem da palavra pela inexistência de muta cum liquida na língua tupi. PGCS

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