por Fernando Gurgel Filho
Definitivamente, cansei de morar na cidade. O ar poluído pelos escapamentos dos veículos, estradas intransitáveis nos horários em que mais se necessita de andar rápido, acidentes de ônibus, de vans, de carros, de motos, de ciclistas, de pedestres... Cansei!
Se pensarmos, então, em assalto, sequestro relâmpago, drogas, gangues, roubo de carros, síndico de condomínios, nas filas e nos gerentes de bancos e no político cantando na quadra...
Definitivamente, ninguém merece!
Eu e a família aproveitamos um feriado prolongado para uns dias na Chapada dos Veadeiros, antecipando o que seria viver no paraíso. Fomos para a fazendinha de um amigo no sábado bem cedo. Chegamos e fizemos um belo churrasco, com muita cerveja e pinga de alambique. Quase anoitecendo catamos lenha para avivar o fogo, tomamos um banho bem quente graças à serpentina do fogão à lenha, ficamos proseando até tarde na varanda à luz das lamparinas e depois fomos dormir alegres e satisfeitos.
Definitivamente, êta vida boa!
E os sons da noite no sertão? Inesquecíveis. Fazia muito tempo que não escutava as folhas das árvores farfalhando ao vento, o pio da coruja e a interminável cantiga do grilo. Claro que o sertão tem também uns pernilongos muito saudáveis, o vento frio assobiando nas frestas do telhado sem forro, o silvo dos morcegos no quarto, as ratazanas passeando nos caibros e os ratinhos roendo o milho no paiol. O filho do caseiro tá internado com suspeita de hantavirose, mas doença existe em qualquer lugar, né?
Acordamos cedo com o galo cantando e os pássaros em alvoroço na mata. Bucólico. Se fosse poeta faria uma ode pastoril romântica ali mesmo, na cama.
Definitivamente, é o paraíso!
Levantamos e tivemos que tomar banho frio, pois o fogão à lenha ainda não estava aceso. A água gelada batendo nas costas parece uma pancada com uma tábua grossa, mas a gente logo acostuma e o resto do dia fica-se numa disposição incrível.
Antes do café, fomos pegar mais um pouco de lenha. Foi aí que vi alguns escorpiões passeando na madeira. Na noite anterior não tinha visto. Ainda bem. Avisei pro meu amigo e ele disse que aquilo era comum e que na semana anterior o caseiro havia matado uma jararaca enorme perto daquela lenha.
Definitivamente, há risco em qualquer lugar do mundo!
Depois fomos buscar o leite no curral, onde o caseiro ordenhava uma das vacas. Ela parecia que babava um pouco, mas estava em pé, firme e altaneira como as vacas brasileiras normalmente são. Não era nenhuma vaca louca inglesa.
Tomamos o café, conversamos um pouco e fomos aproveitar o dia em uma cachoeira próxima. Fazia tempos que não andava assim, no mato, a brisa batendo no rosto, sem preocupações. Nosso amigo avisou - apenas por precaução, claro - que, em caso de aparecer alguma onça , ficarmos bem juntos e não fazermos movimentos bruscos. Também por precaução, fiquei no meio da “comitiva”. Perto da cachoeira parecia que o mato estava pegando fogo. Havia muita fumaça. Logo descobrimos que era apenas uns jovens que tinham acendido uns cigarrinhos do tamanho de um jatobá, mas estavam todos em alfa e não nos incomodaram. Torcemos apenas para não haver discos voadores por perto.
Definitivamente, temos que olhar os pontos positivos!
Voltamos ao entardecer, pois os mosquitos começaram a nos picar e o nosso amigo disse que há perigo de dengue ou febre-amarela, mas que na fazenda dele nunca tinha visto nada disso. Melhor prevenir. No caminho, passei no meio de um capinzal mais alto e logo fiquei com uma coceirinha esquisita. Tirei a camisa. Estava cheia de carrapatos. Musculosos, maculosos não, pois ainda estou vivo. Acho... Um carrapato resolveu se alojar em uma região muito sensível. Logo disseram que o remédio era encostar um fósforo aceso no bichinho para retirá-lo sem problemas. Não gostei do fósforo em brasa. Antes de encostar já antevia a dor. Sugeriram borrifar repelente de insetos. “Melhor”, pensei. Foi não. Ardeu tanto que, na próxima, escolho o fósforo.
Ao chegar à casa da fazenda, a senhora do caseiro avisou que o porquinho que o patrão mandou matar foi encontrado doente e morreu.
- Coitadinho, acho que sofreu um bocado, parecia uma criança gripada..., disse ela, visivelmente emocionada.
Cansados, fomos dormir cedo. Ainda bem que não tivemos que catar lenha para o fogão. Havia bastante. Expulsamos um sapo que estava encolhido no canto do quarto e deitamos com a lamparina acesa. Por precaução, com medo de sapos, ratos, centopeias, baratas, muriçocas, aranhas e morcegos. Dizem que os morcegos do centro-oeste são herbívoros, mas já foram registrados casos de raiva transmitida por esses bichos. Casos raros, porém, mortais. Melhor prevenir.
Dormi com o cheiro do querosene queimado na lamparina fazendo-me sonhar com a avenida engarrafada em um meio-dia de sol muito quente e eu já atrasado para o trabalho. Senti até saudade. Acordei pensando que roça não é minha praia. E por falar em praia, morar em praia, definitivamente, é o meu sonho. Mas, e se as geleiras derreterem muito rápido? Não. Talvez seja melhor morar na serra, perto do mar. Mas, na serra, o ar rarefeito não piora os efeitos da redução na camada de ozônio?
Tomei, então, uma decisão definitiva, mesmo sabendo que, definitivamente, não há nada definitivo neste mundo: dois dias na roça é um bocado de tempo, praia e serra apenas em férias. Melhor ficar com os perigos conhecidos da minha cidade.
Definitivamente.
FGF
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