Nosso estilista principal, Machado, tinha especial predileção pelos olhos dos personagens. Ele era míope e sofria do que hoje chamamos de enxaqueca oftálmica: centelhas que precedem a dor de cabeça. Muitos afirmam que o seu "Memorial de Aires" é o próprio escritor se autobigrafando. Ele diz lá: “Que diabo de fogo é este que brilha de novo nos meus olhos cansados?". Os míopes têm a “gelatina” que preenche o olho muito mais fluida, o que ocasiona a visão de “moscas volantes”. Vejam como Machado as descreveu no "Memórias Póstumas de Braz Cubas": “Interrogações percorriam lentamente o meu cérebro como os pontinhos e vírgulas escuras percorrem o meu campo visual” . Agora é o Bruxo do Cosme Velho, melancólico, escrevendo para Joaquim Nabuco: “Tudo o mais é confuso para estes pobres olhos que a terra há de comer, e não comerá grande coisa, que a vista é pouca e a beleza nenhuma.”
Aqui, uma seleção de "olhos” recolhida nos seus contos. Há muito mais do que isto. Recolhi só os que a minha parca sensibilidade distinguiu durante uma folheada apressada. Frases como “Os olhos são uns porteiros bem indiscretos do coração” são tão deliciosas como os “olhos de sogra” que este menino aqui roubava da avó Maria Roque, doceira para fora e dona do Café Primor em Ouro Preto.
Quando a preguiça escassear, vou apanhar mais algumas flores orvalhadas de dentro dos romances para gozo dos seus leitores. Sim, chamo de olhos as gotinhas esquecidas deixadas pelas madrugadas frias e úmidas para que as flores enxerguem o dia.
1. Eduardo olhava para todos do alto dos seus olhos e da sua felicidade.
2. Amava-se nela tudo, até o amor que se lhe entornava dos olhos como bálsamo de um vaso cheio.
3. Os olhos dele empanados pela cogitação subiam do livro ao teto e baixavam do teto ao livro, cegos para a realidade exterior.
4. Olhos negros, grandes, lavados de uma luz úmida.
5. Ele enterrou-me um par de olhos pontudos.
6. Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão e vinte sete nos olhos.
7. Levantou os olhos acesos de ódio e ásperos de vingança.
8. Era um olhar sem ver, estúpido de todos o sentidos.
9. Os olhos da menina, verdadeiros fogos faziam arder os dele só com fitá-los.
10. Despedia dos olhos uma radiação fantástica e impossível de descrever.
11. Os olhos eram duas esmeraldas nadando no leite.
12. Os olhos são uns porteiros bem indiscretos do coração.
13. Coligiu nos olhos toda soma de eletricidade que tinha.
14. Requebrava os olhos até onde eles podiam ir.
15. Os olhos andavam dispersos no ar ou recolhidos em si.
16. Os olhos fitam muita vez um ponto e a vista não se fixa aí.
17. Ria pelos olhos quando não ria com a boca.
18. Os olhos de Joaquina enviesavam-se na direção de Queirós, e os deste vinham esperá-los a meio caminho numa cavalgada de promessas.
19. Os olhos de Joaninha eram virgens de qualquer conversação masculina.
20. As pupilas centelhavam de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado.
21. Felix dividia os olhos entre mim e a ponta dos sapatos.
22. Uns olhos que valiam só por si, todas as joias e todas as luzes do teatro.
23. A felicidade deles residia em estarem juntos, viverem dos olhos um do outro.
24. A criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro.
Nelson Cunha
Momentos em que o nosso oftalmologista-mor deixa um pouco a tecnicalidade de sua ocupação para resgatar a poesia que o Bruxo do Cosme Velho a ela legou para sempre.
Que venham mais frases de Machado!
PG
Nenhum comentário:
Postar um comentário