20 julho, 2009

Desenvolvimento (in)sustentável

"Eram 169 pulgas, 38 carrapatos e 75 piolhos. Todos moravam num cão de rua. Naquele “planeta”, os carrapatos preferiam o interior das orelhas, os dedos, a cernelha e as axilas. No dorso, lombo e abdômen viviam as pulgas. Os piolhos no restante. O cão era uma coceira só. Sugavam o sangue inoculando-lhe uma saliva irritante. Dia e noite, domingos e feriados.
Um dia, alguém percebeu que o alimento estava caindo de qualidade - um sangue ralo e cada vez mais cor-de-rosa. Seria necessária uma assembléia de todos os moradores.
Na semana seguinte, teve início a I Conferência Planetária do Meio Ambiente. O fórum escolhido foi o dorso do animal. Compareceram 292 pulgas, 94 carrapatos e 101 piolhos. Após a aprovação do regimento da Conferência, uma pulga fez uso da palavra:
- Senhoras e senhores, tenho notado uma drástica diminuição dos nossos recursos naturais. O planeta está anêmico!
- As culpadas são vocês mesmas suas pulgas imediatistas, atacou uma fêmea de carrapato entumescida de sangue.
- Que nada, nós até sabemos reciclar.
- Não entendi, interpelou um piolho.
- Nossas larvas, futuras pulgas, são alimentadas com nossos próprios dejetos… Isto é ou não é reciclagem?
- Acho que tudo é uma questão política, completou outro carrapato.
E a reunião prosseguiu acalorada.
De repente o “planeta” começou a balançar. Efeito estufa? Aumento da temperatura global? Queimadas? Terremotos? Ou efeito do buraco na camada de ozônio? Na verdade, era o cão que se coçava desesperadamente num solitário jequitibá.
Ouvindo toda a discussão a árvore tentou ajudar:
- Gente! Vocês já ouviram falar em “desenvolvimento sustentável”?
Todos silenciaram para escutar.
- Antigamente essa praça era uma floresta. Inúmeras árvores de variadas espécies. Produzíamos flores, frutos, abrigos, sombra e madeira. As folhas mortas e os restos dos animais se decompunham rapidamente pela ação do calor e da umidade. Assim todos os nutrientes eram devolvidos à Terra-Mãe, alimentando-nos e possibilitando o nascimento de novas plantas. Tudo aqui era biodiversidade. Existiam orquídeas, bromélias, cipós e toda a vida animal. As copas amenizavam a queda da chuva que suavemente deslizava entre os galhos. Não havia erosão. De vez em quando cortavam algumas árvores. Nem precisavam reflorestar. Nós mesmas fazíamos o replantio com a ajuda dos morcegos frugívoros, cutias, gralhas, borboletas, beija-flores e até do vento. Assim a floresta se autosustentava. Mas um dia começaram a nos desmatar além da conta. Logo fiquei sozinha. Hoje virei mictório de cães e de gente. As minhas folhas são impiedosamente varridas. Não têm mais o direito de apodrecer ao pé da árvore-mãe…
- Mas afinal o que é desenvolvimento sustentável? - perguntou um piolho aflito.
- É cada um sugar sem exageros o alimento e dar tempo ao “planeta” de se recuperar.
- Vamos ter que produzir economizando, lembrou um carrapato demonstrando preocupação. Afinal todos nós podemos jejuar mais de um mês.
E a plenária efervesceu. Foram criados manifestos e leis ambientais. Publicaram a “Carta dos Ectoparasitos”. Elegeram-se delegados. Todos se comprometeram.
Ao final dos debates, já havia 3.090 pulgas, 2.348 carrapatos e 2.251 piolhos. No dia seguinte, o cão morreu."

Texto do médico veterinário Lélio Costa e Silva, via blog Pronunciado.

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