06 julho, 2009

Louco de dar dó

Por Nelson José Cunha

Acabava de entrar pelo quarto ano do curso de medicina e tinha amigos comunistas enrustidos no meu bairro. A influência esquerdista me fez emplacar uma foto do Che na parede do quarto que covardemente escondia se batia alguém na porta. Era 1968. Comprometedor numa casa cuja cabeça era militar e amigo de generais. Papai via a foto, torcia o nariz e o resto do corpo em franca desaprovação. Minha aparência, à época, justificava sua apreensão: barbicha e cabelos desgrenhados escondendo as orelhas. Aparência de louco ou revolucionário. Num desses domingos de preguiça, papai entrou no meu quarto, evitando como de hábito olhar a literatura vermelha ao pé da cama. Foi logo anunciando que havia conseguido minha nomeação para plantonista do Asilo de Parangaba(1), meu primeiro emprego. Ele sabia e apoiava meu interesse pelos assuntos ligados ao psiquismo humano. Poucos meses antes havia me presenteado com as obras completas de Freud, maravilhosa publicação em papel de seda, que passei a zelar como um amuleto.
O meu primeiro plantão no asilo foi de arrepiar os cabelos. Mesmo estando acompanhado de um colega mais experiente tive vontade de abandonar tudo e voltar para a deliciosa vida de estudante. O hospital era deprimente.
Grades e química numa combinação perversa encarceravam os impacientes mentais. Vivi por ali o resto daquele ano, cada vez mais dividido entre a psiquiatria e a oftalmologia(2), entre olhar pra dentro da alma e olhar pra o mundo lá fora. Aquilo tudo estava me fazendo mal. Os pesadelos passaram a me fazer companhia e no almoço era o apetite que se despedia. Comecei a sentir estranhas sensações. Estando a conciliar o sono, ouvia sons de carrilhão(3). Soavam como milhares de sinos solidários.
Acordava daquele quase sono, coração a galopar e ficava esperando um novo gran finale da orquestra invisível. Mas a audição era única e não se repetia numa mesma madrugada. Dia seguinte, punha-me a indagar se alguém de casa ouvira alguma coisa. Diante da negativa espantada de todos, comecei a duvidar da minha sanidade mental. Será que essa vida de aprendiz de psiquiatra estava a me fritar os miolos? Seria o anúncio de que algo grave estava para me acontecer? Passava então a buscar no meu comportamento elementos que indicassem alguma desordem mental.
Mas essa atitude em si já indicava um pensamento lógico, concatenado e distante de um afetado. Acalmava-me pelo menos até que a noite chegasse, quando novamente ao iniciar o sono, o maldito carrilhão comparecia real e debochado. Seria uma outra forma de loucura? Estaria construindo para mim um mundo particular com a clássica lógica esquizofrênica? Enredado nestas dúvidas comecei a perder o sono e apegar-me ao Freud da cabeceira. Numa dessas noites, já insone, ouvi o carrilhão novamente, mas dessa vez estava acordado. O som era verdadeiro e estava dentro do meu quarto, vinha de cima do armário. Levantei-me como um felino, acendi a luz e marchei contra o armário repetindo o gesto de Dom Quixote ao se lançar contra um moinho de vento para resgatar sua razão. Ali estava o meu velho violão, esquecido e empoeirado, presente de meu padrinho e a espera do Professor Cláudio(4) que nunca comparecia. Tremia quando retirei o violão para examiná-lo à lente. De repente, por entre as cordas, com o som de carrilhão, saiu assustado um maestro e meu carrasco. Uma enorme ratazana(5) que escolheu o violão calado para trazer à vida seus cinco ratinhos. Por pouco não me deixou louco de dar dó.
Dó maior! Dor menor.
Rodapost
(1) Nelson, no quarto ano de medicina eu também flertei com a psiquiatria no Asilo de Parangaba; no quinto ano, foi namoro com ela no Hospital Mira y Lopez.
(2) No internato, simpatizei (simpatia é quase amor) a neurologia; a seguir, estando já formado, desposei a pneumologia com a qual vivo até hoje. Em 1973 (mas foi só nesse ano), ainda dividi os meus afetos com a psiquiatria na Casa de Saúde Santa Mônica, em Petrópolis. Sacumé, quem foi casa sempre é tapera...
(3) Sem que pudesse comparar com o "Sons de carrilhões" do João Pernambuco, não é?
(4) Amigo Nelson, vou lhe pedir um favor / que só depende da sua boa vontade / é necessário anistiar o professor / que está vivendo etc. e tal.
(5) O tempo é mesmo um gelol para o trauma. Pois é agora uma ratazana (até simpática) que ilustra esse seu artigo.


Paulo Gurgel

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