31 julho, 2011

A primeira noite em Paris

A respeito do texto A síndrome de Paris, ocorreu-me a lembrança de um ótimo texto escrito por um colega do Banco Central, aí de Fortaleza. Aliás, todos os textos da autoria dele são excelentes. O nome do colega é Antonio Coelho Bezerra de Farias Filho. Consultei-o e ele autorizou a publicação. 
Fernando Gurgel Filho, de Brasília

A primeira noite em Paris
Antonio Coelho Bezerra de Farias Filho
A primeira noite em Paris a gente nunca esquece. Lembro-me bem, foi no dia 2 de agosto de 1985, uma sexta-feira. Mas até chegar aquela sexta, houve outras sextas de muita ansiedade. Naquela época não era tão fácil viajar quanto é hoje. Não havia internet para fazer reservas de hotéis com antecedência, não havia e-mail para resolver pendências durante a viagem e, principalmente, não havia cartão de crédito para esticar o orçamento numa emergência. De parecido, somente o preço da passagem: mil dólares, há 26 anos.
Eu nunca tinha saído do Nordeste, nunca tinha andado de metrô e mal sabia conjugar o verbo to be. O cenário era cinza. Mas a vontade de viajar era tanta que eu só enxergava azul, vermelho e branco. A primeira providência foi comprar um livro das edições de ouro, “Aprenda francês em 30 dias”. Como só havia três semanas até a viagem, priorizei três seções: “no aeroporto”, “na estação de trem” e “na padaria”. Deixei de lado “no restaurante” e “no hotel”. A verba era muito curta, a conta não fecharia, eu não poderia ir a restaurantes nem me hospedar em hotéis.
O plano era ficar vários meses na Europa, até o dinheiro acabar ou o frio chegar, o que ocorresse primeiro. Naquelas circunstâncias, ainda mais, as duas necessidades básicas de um nordestino em terra estrangeira eram comer e dormir. Comer não me preocupava muito, bastaria escolher uma das duas opções: almoço ou jantar. Um bom café da manhã eliminaria o almoço. Em dias em que não houvesse hospedagem, o café não estivesse já no preço, seria o almoço a principal refeição do dia. Dado o aperto no orçamento, não poderia me hospedar todos os dias nem mesmo em albergues. Teria de alternar: noites em albergues, noites em estações de trem. Sim, tinha ouvido dizer que era muito comum mochileiros dormirem nas estações. Um dos problemas é que eu não me enquadrava nem mesmo na categoria dos mochileiros. Mas só fui descobrir isso lá. Um mochileiro, por definição, usa mochila. Não levei uma mochila nem propriamente uma mala. Levei uma espécie de sacola grande com duas alças. Duas pessoas a carregariam melhor. Tive ajuda logo no primeiro dia, vocês verão.
Um amigo, ao saber do meu plano, tentou me convencer a desistir dele. Vendo que não iria ter êxito, restou-lhe tentar me ajudar de outra forma. “Tenho uma amiga, casada com um francês, que mora em Paris. Ela é gente boa”, disse ele. Pensei: resolvido o problema da hospedagem. Havia outro problema a ser resolvido antes de partir, um doméstico: como explicar aos meus pais que eu iria viajar à França com pouco dinheiro, sem nunca ter saído do Nordeste, sem saber falar quase nada. Mas antes de contar o plano, comprei a passagem. Do contrário, correria o risco de eles me convencerem a desistir da viagem. “Mãe, a senhora não se preocupe. Tenho um amigo que tem uma amiga casada com um francês. Eles moram em Paris. Meu amigo já telefonou para eles. Vou ficar hospedado lá. É só nos primeiros dias. Depois, fico em hotéis. É tranquilo”. Ela virou-se para o meu pai e disse: “Antonio, convença esse menino a desistir disso, tá vendo que não vai dar certo?!”. Meu pai também não aprovava a ideia, mas ele não queria admitir: “Lenita, deixa o menino ir, vai ser bom pra ele, sair de casa, aprender”, disse meu pai, sem convicção.
Passou-se outra sexta-feira de muita ansiedade e chegou o dia do voo Air France Recife-Paris. Naquela época, tudo só se resolvia por Recife. Hoje, os portugueses da TAP trouxeram a ponte aérea Fortaleza-Lisboa; e os espanhóis da Ibéria, a ponte aérea Fortaleza-Madri. A expectativa era grande na chegada ao aeroporto Charles de Gaulle. Afinal, eu estava desempregado, levava pouco dinheiro e não tinha reserva de hotel, apenas o endereço da brasileira. Houvesse um Sarkozy em 1985 e eu teria sido deportado no primeiro voo. Mas o presidente era François Mitterrand, que nem exigia visto dos brasileiros. Grande Mitterrand. Seu representante na alfândega carimbou meu passaporte sem puxar conversa. Ainda bem. Logo no aeroporto, o livro “Aprenda francês em 30 dias” não surtia o efeito desejado. Eu tinha decorado umas frases; o problema era a pronúncia, que não se encaixava direito.
Como não sabia andar de metrô, fui de ônibus até o centro da cidade luz. De lá, consegui chegar a uma praça que ficava perto do apartamento da amiga do amigo, a brasileira casada com o francês. Eu carregava com dificuldade o sacolão e, na mão esquerda, levava o endereço da minha primeira hospedagem. Por sorte, a colônia portuguesa em Paris era grande nos anos 80. Um senhor veio me ajudar, um português. Ele me levou até o apartamento do casal e tocou o interfone. A brasileira atendeu, disse “pode subir”. No elevador, havia uma senhora com um cachorro. Ela não foi muito simpática. Pelo tamanho do sacolão, deve ter pensado “veio para ficar, é mais um imigrante”.
A brasileira, um pouco desconcertada, me recebeu bem. “Meu marido está no trabalho, vai demorar um pouco”, explicou. Ela tinha saudades do Brasil. Conversamos, contei as novidades. Era o governo Sarney, o assunto foi inflação. Enquanto o marido não chegava, aproveitei e pedi uma aula de como andar de metrô. Horas depois, já tarde, chegou o marido. Era bem mais velho do que ela. Começaram a conversar e, embora eu não entendesse quase nada do que diziam, percebia que o francês não via com muita simpatia a ideia de eu me hospedar lá por uns dias. Vá lá, que fosse uma noite apenas, a mais difícil de todas, a primeira e já estaria de bom tamanho.
Ela traduziu para mim: “Olha, não vai dar certo você dormir aqui, é agosto, um cunhado vem passar férias com a gente. Mas meu marido vai lhe indicar um hotel bom e barato”. O plano B era um albergue; e o C, uma estação de trem. Mudei de assunto: “Estou pensando em conhecer também Bruxelas, fica perto, queria visitar o principal ponto turístico de lá, a estátua do menino fazendo xixi, o Manneken Pis”. O francês emendou: “O trem sai da Gare du Nord. Levo você até a estação de metrô mais próxima”. Depois explicou que o bom de Bruxelas era mesmo só a Grand Place. Não deu tempo para mais nada. Ele foi logo pegando numa das alças do sacolão. “Vamos, antes que fique mais tarde”, apressou. No trajeto até a entrada da estação do metrô, ele segurava numa alça; e eu, na outra. Não houve diálogo. Nem poderia. Apontou para a boca do metrô e lá me deixou.
Já era noite quando cheguei à estação de trem. Procurei os mochileiros, queria me juntar com eles. Alguns já se preparavam para dormir na estação. Fui ficando. Amanhã procuro um albergue, pensei. A conversa parecia animada. No grupo, entre outros, havia uma moça da Dinamarca, um rapaz da Suécia, uma belga e um espanhol. Na verdade, ele não se considerava espanhol, era da Catalunha. Fui então apresentado ao sleeping bag. Pois é, todos usavam um saco de dormir. Eu tinha levado um colchonete com um lençol. E vocês precisavam ver o tamanho da pochete. Tudo ia bem até por volta das duas da manhã. Quando já estávamos acomodados, dormindo, chegaram uns seguranças da estação. Disseram que a gente não poderia dormir lá dentro. O jeito foi sair. E fui seguindo o grupo. O albergue iria ficar mesmo para a noite seguinte. Todos se deitaram na calçada, em frente à estação Gare du Nord. E lá dormimos. Pelo menos, tentamos.
De manhã bem cedo, com o sol no rosto, me despedi dos mochileiros e fui à padaria mais próxima. Depois do croissant, procurei um telefone, precisava ligar para minha mãe e contar como tinha sido minha primeira noite em Paris. Não tinha dormido bem, por óbvio, mas se eu contasse como tinha sido aquela noite, quem passaria a não dormir bem seria ela.
– A senhora se lembra do apartamento da amiga do amigo, a brasileira casada com o francês? Não quis incomodar o pessoal, achei melhor dormir num hotel.
– Meu filho, a viagem foi boa? Você dormiu bem ontem?
– Sim, muito bem. O hotel é perto da Torre Eiffel. Da janela do quarto, dá pra ver a torre. À noite, toda iluminada, ela fica muito bonita.
– Não deixe de mandar notícias!
– Fique tranquila, não se preocupe. Vou mandar um postal da torre. Um beijo na senhora e no pai.
Ainda pensei em dizer que eu tinha me hospedado no Ritz, mas ela não iria acreditar.

Um comentário:

Ana Margarida disse...

EXCELENTE TEXTO. REALMENTE, PARIS VALE A PENA DE QUALQUER JEITO.