[Trechos iniciais] Eu queria começar falando de São Lourenço, padroeiro dos humoristas. Pouca gente sabe que São Lourenço morreu na grelha por uma piadinha. São Lourenço fez uma gracinha. O imperador de Roma pediu que entregasse todas as riquezas da Igreja, e Lourenço foi ao imperador, com uma multidão de pobres, e disse: "eis a maior riqueza da igreja". E foi condenado à grelha. Na grelha, ardendo em chamas, deitado sobre a grelha, e já ardendo quase morto, ele ainda se vira para o carrasco e diz: "pode virar que este lado já está bom". Por essa, São Lourenço é o padroeiro dos humoristas e dos cozinheiros (e dos churrasqueiros também). Eu sou devoto de São Lourenço, apesar de ateu.
Eu aprendi com ele que o humorista não pode ter medo, que o humor não convive com o medo. Então, eu não tenho medo nem da morte, eu vou ter da censura? Ao contrário, eu quero agradecer aos censores, sim, porque não tem nada melhor para a classe dos humoristas do que a figura dos censores. Não há nada mais patético, mais risível, mais ridículo, mais propício a piadas do que essa contradição humana, que é o sujeito pudico que passa o dia à procura de sacanagem. É um beato que passa o dia inteiro à procura de um pinto. Ele acorda, ele se senta à sua mesa, ele põe os óculos e pega uma caneta e, até o final do dia, ele procurará mamilos, riscará petecas, sublinhará a bilaus. É isso que ele faz na vida.
Ele é um sujeito que se dedica a procurar a obscenidade. É um sujeito que, para escolher essa profissão, precisa ser no mínimo um pervertido. Ele quer a sacanagem só para ele e não deixa que ninguém mais veja. Pior, ele sugere arremedos que sempre pioram o objeto censurado. Tanto é que a história se encarrega de esquecê-los. Nelson Rodrigues, Chico Buarque, Caetano Veloso, Graciliano Ramos, Cassandra Rios, Érico Veríssimo - todos censurados! Alguém se lembra do nome dos censores? Ninguém. Não há sequer um beco em homenagem a eles. Ele está no último dos círculos do inferno de Dante.
Segundo o atual diretor de artes cênicas da Funarte, os artistas estão "deturpando os valores mais nobres da nossa civilização, propagando suas nefastas agendas progressistas, denegrindo nossa sagrada herança judaico-cristã". É graças a gente como ele que eu tenho um emprego garantido pelos próximos três anos, porque esse governo é um pré-sal da estupidez. Então, nesse processo de "damarisação" do Brasil, alguns choram, outros vendem lenço. Eu estou vendendo lenços, mas o mesmo não pode ser dito dos artistas que não vivem do ridículo alheio e que são muitos. Esses, sim, correm um sério risco, porque toda arte que presta (um dia) na história foi considerado nefasta. [. . .]
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