Nelson José Cunha, médico e escritor
Fui lá para ver de quem tanto falavam - O Braz tacheiro. Claro que havia também outros motivos para a viagem: Dezessete anos sem visitar o lugar onde a minha memória fez um ninho e lhe deu o nome de Ubajara. Queria ver também quem não me via: Parentes e amigos do meu paiFui entrando na cidade e lembrando do meu avô, já em rodas, debruçado na janela, a ver feira e interromper passantes com indagações banais: - E a vaca, pariu? - Trouxe a farinha que lhe pedi? E outras bobinhas. Minha avó, pequenina e frágil, comandava a cozinha para o almoço das dez, agitando, maestrina, a enorme chave da despensa. Lembro Muinha, vestida de chita barata, passos abertos tipo “dez pras duas”, correndo com uma brasa na colher. Levava o fogo para o cigarro empalhado do velho Quincas. Conduzia a chama do olímpico esforço de servir com um amor franciscano àquela família que um dia lhe dera prato e cobertor. Muinha é minha heroína, sua lembrança é o amuleto que me recompõe quando perco as esperanças no gênero humano. Quem a conheceu sabe de quem falo e chora comigo sua falta, pois ela foi a melhor de todos nós. Santinha!
A missa de domingo tinha quermesse na praça, radiadora com mensagens ingênuas anunciando amores tímidos. Eu mesmo arrisquei uma flecha para alguém que vestia azul e circulava na praça de braços com outras. Todas riam ao passar por mim, o tal de boné carmim. Ia dormir sem trocar palavra, dormia rápido para no sonho ter coragem de perguntar-lhe pelo menos o nome.
Na feira, gostava de me aproximar dos ciganos e espreitar suas negociatas com animais e tachos cobreados. Achava as ciganas mais belas e misteriosas do que as mulheres de cá. Uma delas quis ler minha mão, mas por medo ou timidez, neguei a mão e a viagem ao futuro. Saí correndo e entrei na bodega do Chico Chagas, amigo do meu avô e de lá fiquei espiando o mundo dos que não conheciam horas, disciplinas, estudos e compromissos, o mundo que já começava a me aprisionar. Eu invejava o admirável mundo vagabundo dos ciganos.
A casa de meu avô fronteava a praça sem recuo. Descia-se um degrau para pisar na sala de assoalho rústico que rugia e retumbava. Os quartos eram escuros, sem janelas, mas cheios de portas. Alcovas despojadas, devassadas, algumas redes dobradas em cachos e um baú tão lacrado que acendia minha fantasia:
A mais saborosa parte da casa era a cozinha aberta para o pátio e com a lenha sempre acesa. A goiabeira do quintal, de boa sombra e más goiabas, guarnecia a porta da cozinha por onde descíamos para o porão à cata de velharias e jacas maduras. Depósito de rapaduras e alfenins, mangas e amendoins que atiçavam o apetite do menino magro, avesso ao sal das comidas boas.
Dessa vez, o avô sou eu, andando na praça, conectando um fio ao passado, buscando uma infância que desapareceu como água servida. Os tempos mudaram a feira de Ubajara. Não há mais ciganos. Uma barraca vende a quilo roupas usadas e arrematadas em São Paulo. Um caboclo de brincos anuncia DVD do Matrix e outras pinóias do Paraguai. Assim vai se montando o cenário que servirá às reminiscências dos velhos de amanhã. O mundo segue seu curso e vai deixando pelo caminho esses velhos doentes de saudades.
- Aqui se vende tacha? Essas tachas de pregar solado?
Ele já exasperado, respondeu que vendia tacho de cobre para garapas e doces e que entre tacha e tacho, um ignorante não vê muita diferença. Era o que eu precisava para iniciar a conversa num clima menos amistoso. Perguntei então se podia fazer pipoca com os tachos. Respondeu que pipoca se faz com milho e me fez engolir cuspe e emudecer.
Atarracado, mãos brutas, olhar de nojo pelo atrevido forasteiro. Era falante, áspero e briguento: vestia-se com estopim de dinamite. Perguntei porque havia tantos retratos de políticos na parede, respondeu que é pra ter raiva deles.
- Para que esta quantidade de garrafões de pinga, se senhor não bebe? - perguntei com ar abestalhado.
- Já bebi muito, mas não bebo mais. Pus ai só pra teimar.
- Então o senhor é teimoso?
- Sou sim, mas num sou sévergonha. Aqui em Ubajara tem um beco que eu num passo.
- Por que não passa?
- Num passo porque eu dixe. Dixe que num passava e num passo nem se me matar. Já me deram uma D20 zerada para passar e eu num passei. O ômi pode ser teimoso, só num pode ser é sévergonha.
Esse é o Braz, o Seu Lunga(*) da Ibiapaba. Um homem que pode ser tudo, mas não é um sévergonha.
Tem-se dito!
(*) Seu Lunga, o do Cariri, que esteve recentemente de passagem pelo blog, foi o responsável por Nelson haver desarquivado e enviado esta crônica.
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