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20 janeiro, 2010

Braz tacheiro

Nelson José Cunha, médico e escritor
Fui lá para ver de quem tanto falavam - O Braz tacheiro. Claro que havia também outros motivos para a viagem: Dezessete anos sem visitar o lugar onde a minha memória fez um ninho e lhe deu o nome de Ubajara. Queria ver também quem não me via: Parentes e amigos do meu pai
Fui entrando na cidade e lembrando do meu avô, já em rodas, debruçado na janela, a ver feira e interromper passantes com indagações banais: - E a vaca, pariu? - Trouxe a farinha que lhe pedi? E outras bobinhas. Minha avó, pequenina e frágil, comandava a cozinha para o almoço das dez, agitando, maestrina, a enorme chave da despensa. Lembro Muinha, vestida de chita barata, passos abertos tipo “dez pras duas”, correndo com uma brasa na colher. Levava o fogo para o cigarro empalhado do velho Quincas. Conduzia a chama do olímpico esforço de servir com um amor franciscano àquela família que um dia lhe dera prato e cobertor. Muinha é minha heroína, sua lembrança é o amuleto que me recompõe quando perco as esperanças no gênero humano. Quem a conheceu sabe de quem falo e chora comigo sua falta, pois ela foi a melhor de todos nós. Santinha!
A missa de domingo tinha quermesse na praça, radiadora com mensagens ingênuas anunciando amores tímidos. Eu mesmo arrisquei uma flecha para alguém que vestia azul e circulava na praça de braços com outras. Todas riam ao passar por mim, o tal de boné carmim. Ia dormir sem trocar palavra, dormia rápido para no sonho ter coragem de perguntar-lhe pelo menos o nome.
Na feira, gostava de me aproximar dos ciganos e espreitar suas negociatas com animais e tachos cobreados. Achava as ciganas mais belas e misteriosas do que as mulheres de cá. Uma delas quis ler minha mão, mas por medo ou timidez, neguei a mão e a viagem ao futuro. Saí correndo e entrei na bodega do Chico Chagas, amigo do meu avô e de lá fiquei espiando o mundo dos que não conheciam horas, disciplinas, estudos e compromissos, o mundo que já começava a me aprisionar. Eu invejava o admirável mundo vagabundo dos ciganos.
A casa de meu avô fronteava a praça sem recuo. Descia-se um degrau para pisar na sala de assoalho rústico que rugia e retumbava. Os quartos eram escuros, sem janelas, mas cheios de portas. Alcovas despojadas, devassadas, algumas redes dobradas em cachos e um baú tão lacrado que acendia minha fantasia: Guardaria moedas de ouro puro? Jóias e pedrarias? Com o falecimento do meu avô, o velho lampião Petromax do quarto pôde iluminar o baú aberto. Lembro-me de dezenas de títulos de eleitor, Notas Phiscais de atacadistas de Sobral fornecedores do Armazém do Quincas. Havia ainda um pincinê de mola (na foto menor) que guardo até hoje. Do meu avô trago com orgulho um queixo, um pincinê e o sobrenome.
A mais saborosa parte da casa era a cozinha aberta para o pátio e com a lenha sempre acesa. A goiabeira do quintal, de boa sombra e más goiabas, guarnecia a porta da cozinha por onde descíamos para o porão à cata de velharias e jacas maduras. Depósito de rapaduras e alfenins, mangas e amendoins que atiçavam o apetite do menino magro, avesso ao sal das comidas boas.
Dessa vez, o avô sou eu, andando na praça, conectando um fio ao passado, buscando uma infância que desapareceu como água servida. Os tempos mudaram a feira de Ubajara. Não há mais ciganos. Uma barraca vende a quilo roupas usadas e arrematadas em São Paulo. Um caboclo de brincos anuncia DVD do Matrix e outras pinóias do Paraguai. Assim vai se montando o cenário que servirá às reminiscências dos velhos de amanhã. O mundo segue seu curso e vai deixando pelo caminho esses velhos doentes de saudades.
Fui ver o Braz tacheiro (na foto maior – Nelson Cunha, Braz e esposa, Paulo Lopes). Sujeito rabugento, que se tornou lenda no alto da serra. Fui conferir sua fama e comecei atiçando o braseiro com uma pergunta imbecil:
- Aqui se vende tacha? Essas tachas de pregar solado?
Ele já exasperado, respondeu que vendia tacho de cobre para garapas e doces e que entre tacha e tacho, um ignorante não vê muita diferença. Era o que eu precisava para iniciar a conversa num clima menos amistoso. Perguntei então se podia fazer pipoca com os tachos. Respondeu que pipoca se faz com milho e me fez engolir cuspe e emudecer.
Atarracado, mãos brutas, olhar de nojo pelo atrevido forasteiro. Era falante, áspero e briguento: vestia-se com estopim de dinamite. Perguntei porque havia tantos retratos de políticos na parede, respondeu que é pra ter raiva deles.
- Para que esta quantidade de garrafões de pinga, se senhor não bebe? - perguntei com ar abestalhado.
- Já bebi muito, mas não bebo mais. Pus ai só pra teimar.
- Então o senhor é teimoso?
- Sou sim, mas num sou sévergonha. Aqui em Ubajara tem um beco que eu num passo.
- Por que não passa?
- Num passo porque eu dixe. Dixe que num passava e num passo nem se me matar. Já me deram uma D20 zerada para passar e eu num passei. O ômi pode ser teimoso, só num pode ser é sévergonha.
Esse é o Braz, o Seu Lunga(*) da Ibiapaba. Um homem que pode ser tudo, mas não é um sévergonha.
Tem-se dito!

(*) Seu Lunga, o do Cariri, que esteve recentemente de passagem pelo blog, foi o responsável por Nelson haver desarquivado e enviado esta crônica.

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