Margaret Atwood responde com muita sabedoria: Na República de Gilead, claro.
Em "O Conto da Aia", Margaret Atwood descreve uma ditadura religiosa, uma teocracia, chamada República de Gilead, onde foram adotados quase todos os princípios defendidos por Sócrates e descritos por Platão no seu livro "A República". Princípios que, em maior ou menor escala, já foram adotados em nossa filosofia ocidental judaico-cristã e que continuam a fazer enorme sucesso entre aqueles que teimam em defender repressão como única forma de controle e crescimento do ser ser humano.
Na República de Gilead, como na de Platão, estão presentes:
- as mulheres são seres inferiores e suas únicas "utilidades", são cuidar da casa, da cozinha e procriar;
- Platão/Sócrates defendiam o infanticídio como forma de depurar a raça. Em Gilead eram as mulheres estéreis e rebeldes que iam parar em colônias penais, onde morriam. Ou, então, em eventos chamados de "Salvamentos" onde eram executadas em praça pública;
- na República de Gilead, uma teocracia, o absolutismo era a forma de governo;
- a sociedade estava estratificada em castas: os Comandantes, as Esposas, as Martas, os Olhos, os Guardiães, as Tias e as Aias;
- foi imposta severa censura sobre as artes e artistas: poetas, músicos, atores, compositores, etc;
Margaret Atwood descreve para que serviam uma das Aias: "...fazia parte da primeira leva de mulheres recrutadas para propósitos reprodutivos e fora destinada àqueles que não só requeriam esses serviços bem como podiam reivindicá-los por meio de sua posição na elite. O regime criou uma reserva imediata dessas mulheres ao declarar adúlteros todos os segundos casamentos e ligações extraconjugais, prendendo as parceiras do sexo feminino, e, com fundamento de que elas moralmente inaptas, confiscando os filhos e filhas que já tivessem, que foram adotados por casais sem filhos dos escalões superiores que era ávidos por progênie, quaisquer que fossem os meios empregados."
Nesta descrição parece ecoar todas as palavras de Sócrates, transcritas por Platão em "A República":
"Sócrates — De acordo com os nossos princípios, é necessário tornar as relações muito frequentes entre os homens e as mulheres de elite, e, ao contrário, bastante raras entre os indivíduos inferiores de um e outro sexo; além do mais, é necessário educar os filhos dos primeiros, e não os dos segundos, se quisermos que o rebanho atinja a mais elevada perfeição: e todas estas medidas deverão manter-se secretas, salvo para os magistrados, a fim de que, tanto quanto possível, a discórdia não se insinue entre os guerreiros."
"Sócrates — Assim, se um cidadão, mais velho ou mais novo, se imiscuir na obra comum de procriação, nós o declararemos culpado de impiedade e injustiça, pois fornece ao Estado um filho cujo nascimento secreto não foi colocado sob a proteção das preces e sacrifícios que as sacerdotisas, os sacerdotes e toda a cidade oferecerão para cada casamento, a fim de que de homens bons nasçam filhos melhores, e de homens úteis, filhos ainda mais úteis; um tal nascimento, ao contrário, será considerado fruto das trevas e da libertinagem."
A única diferença era que em "A República", de Platão, Sócrates defendia: "Todas as mulheres dos nossos guerreiros pertencerão a todos: nenhuma delas habitará em particular com nenhum deles. Da mesma maneira, os filhos serão comuns e os pais não conhecerão os seus filhos nem estes os seus pais."
A sociedade ocidental que se crê religiosa, culta e civilizada ainda tem muita recaída para o lado da simples repressão como forma de catalizar o medo que está sempre latente no seio de todas as comunidade humanas. Esta a parte mais horripilante do universo descrito em "O Conto da Aia", porque é um universo que está bem perto de todos nós. Ou, no mínimo, como um universo potencial onde os religiosos têm sede de assumir o poder em qualquer país do mundo e transformá-lo em uma tirania.
Fernando Gurgel Filho
Caro Fernando. Salve! Muito interessante as ideias colocadas no texto. Infelizmente não tive a oportunidade de ler as obras citadas. Estamos todos surpresos com o momento que estamos passando. São muitos retrocessos, muita desinformação, ignorância, sementes de violência, preconceito, indiferença. Parece que há um círculo perverso que mantém a tensão e o julgo de dominadores sobre os dominados. Precisamos superar esse abismo. Acreditei durante toda a minha formação que nosso tempo anunciava o futuro, o desenvolvimento, a superação de inúmeros problemas. Triste perceber que somos apenas meros espectadores da história... com pouco a oferecer além de palmas e opiniões. Triste testemunhar um retrocesso. Mais uma do ser humano. Obrigado, Fernando!
ResponderExcluirMeu amigo, Régis. Sempre haverá alguém para dizer, ou gritar: "NÃO".
ResponderExcluirE os erros coletivos, mais danosos porque são a soma dos erros individuais, acabarão, um dia, por se tornar acertos coletivos, mais benéficos para a sociedade que todos os acertos individuais.