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18 abril, 2019

Fome, manga e o caroço da memória

Lúcio Verçoza (*)
Nem só de manga vivem os homens e mulheres, eles também se alimentam de memória. As narrativas da história oral se misturam com o presente. Há várias décadas, em uma época na qual o centro de Maceió era margeado por sítios, uma criança atravessou a Rua Barão de Atalaia e pulou a cerca em direção às inúmeras mangueiras, cajueiros e plantações de coco. Quando estava em cima do galho do cajueiro, o menino foi surpreendido pelo estampido. Não conseguiu correr, dizem que já caiu morto. O tiro partiu da espingarda do proprietário da terra. Após a autópsia, descobriram que no estômago do garoto só havia um pouco de caju, recém-chupado.
O tempo passou, no terreno encontra-se atualmente o campus do Instituto Federal de Alagoas (antiga Escola Técnica). Na hora do recreio, vários jovens caminham pelo pátio, alguns deitam sob a sombra, talvez na mesma posição em que caiu o corpo sem vida. Ninguém sabe o nome do menino assassinado por tentar saciar a fome. Durante certo tempo, a área ficou conhecida como “Sítio do Doutor Caju”. Hoje poucos conhecem essa história. Sem a força da história oral, talvez esse fato não tivesse chegado até o presente. É como o caroço de manga, uma semente que sobrevive porque não pode ser engolida ou digerida. Uma história que foi contada de uma geração para outra com o sentido de não ser esquecida.
Retornando ao presente, a atual ministra da Agricultura, Tereza Cristina, afirmou que a agricultura não é assunto de segurança nacional no Brasil porque “nós não passamos muita fome, porque nós temos manga nas nossas cidades, nós temos um clima tropical”. Como se nossas cidades fossem um imenso pomar sem cercas, muros e concreto armado. Como se fosse possível plantar sem ter acesso à terra. Como se fosse simples comer frutas na cidade sem a mediação do dinheiro. Como se qualquer quantidade de viventes com fome pudesse ser considerada pouca.
Em pesquisa rápida na internet é fácil encontrar notícias sobre mortes de jovens que buscavam frutas. Não se trata de matérias antigas, a maioria do século 21. Uma das que mais chama a atenção, de dezembro de 2016, tem o seguinte título: “Garoto é baleado e morre ao subir em muro para pegar manga”². O menino tinha 13 anos de idade e vivia no sul da Bahia.
Não é que um punhado de manga ou de caju tenha mais valor do que a vida de uma criança, mas, da perspectiva de quem efetuou o disparo, se trata do direito sagrado de defender a sua propriedade privada – e esse direito sagrado estaria acima de tudo e de todos. Com a posse de armas facilitada, é provável que a coleta de manga se torne algo ainda mais perigoso.
Mas nem só de manga e memória vivem os homens e mulheres, também se alimentam de futurar. De sonhar com mangueiras que não saciem somente o estômago. Com uma sombra que não caiba apenas quem está dentro do terreno rodeado de cerca elétrica. Um mundo em que se possa andar com seus amigos, sem ser discriminado. De atravessar o tempo mais adverso carregando o futuro germinado na semente da memória.

(*) Lúcio Verçoza é Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos e autor do livro “Os homens-cangurus dos canaviais alagoanos: um estudo sobre trabalho e saúde” (Edufal-Fapesp, 2018). Este artigo foi originalmente publicado no Jornal GGN - 16/04/2019

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