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04 setembro, 2014

O voto contra a desigualdade social

por Jorge Furtado, cineasta
Se alguém me dissesse, em 2004 – quando o primeiro governo Lula sofria a oposição feroz de toda a mídia brasileira e tinha pouco ou nada para mostrar de resultados – que em dez anos o segundo turno da eleição presidencial seria disputado entre duas ex-ministras do governo Lula, uma pelo Partido dos Trabalhadores e uma pelo Partido Socialista Brasileiro, eu diria ao meu suposto interlocutor que a sua fé na democracia era um comovente delírio. A provável ausência, pela primeira vez no segundo turno das eleições presidenciais, de candidatos da direita autêntica, do PSDB, do DEM e do PTB, é mais uma boa notícia que a democracia nos traz. Imagina-se que, vença quem vença, muitos dos derrotados voltarão correndo para os braços confortáveis do novo governo, esta é a má notícia.
Tenho familiares e bons amigos que vão votar na Marina e também no Aécio. Eu vou votar na Dilma. Acho que foi Tzvetan Todorov quem disse (mais ou menos assim) que a democracia nos reúne para que a gente resolva qual é a melhor maneira de nos separar. Não sou nem nunca fui filiado a qualquer partido, já votei em vários, tenho amigos em alguns. Neste que é o maior período democrático da nossa história (25 anos, sete eleições consecutivas), o Brasil não parou de melhorar e não há nada que indique que vá parar de melhorar agora.
Votei no Lula, desde sempre até ajudar a elegê-lo em 2002, com o palpite de que um governo popular, o primeiro em 502 anos, talvez pudesse enfrentar com mais vigor o grande problema brasileiro: a desigualdade social. Achei que, talvez, substituindo a ideia de que o bolo deve primeiro crescer para depois ser divido pela ideia de incentivar o crescimento do país com melhor distribuição de farinha, ovos, manteiga, fogões, casas com luz elétrica, empregos e vagas nas escolas e nas universidades, finalmente poderíamos começar a nos livrar da nossa cruel e petrificada divisão entre a casa grande e a senzala. Meu palpite estava certo. A desigualdade brasileira continua grande e cruel mas está, finalmente, diminuindo.
Voto, ainda, primeiro contra a desigualdade social, ainda o maior problema do país, um dos mais injustos do planeta, em poucos lugares há uma diferença tão grande entre pobres e ricos. A elite brasileira (sim, ela existe, esta aí), fundada e perpetuada no escravismo, luta para manter seus privilégios a qualquer custo. Eles são donos dos bancos, das grandes construtoras, fábricas e empresas, das tevês, rádios, jornais e portais da internet e defendem ferozmente sua agradável posição. A única maneira de enfrentar seu enorme poder é no voto.
Voto contra o poder crescente do capital sobre as políticas públicas. Quem vive de rendas pensa sempre mais no centro da meta da inflação e menos nos níveis de emprego, mais na taxa dos juros e menos no poder aquisitivo dos salários. O poder do capital especulativo, rentista, é gigante, mora na casa dos bilhões de dólares. Voto contra, muito contra, a autonomia do Banco Central, que tira do governante, eleito pelo nosso voto, o poder de guiar o desenvolvimento segundo critérios sociais, protegendo o país do ataque de especuladores e garantindo renda e empregos, e entrega este poder ao tal mercado, hereditário e eleito por si mesmo, sempre predador e zeloso em garantir a sua parte antes de lamentar os danos sociais causados por seus lucros. (Ver Espanha, Grécia, EUA, Finlândia etc.)
Voto contra submeter os critérios de uso dos nossos recursos naturais não renováveis, como o petróleo, ao interesse de grandes empresas estrangeiras. O petróleo brasileiro e seu destino é o grande assunto não mencionado nas campanhas eleitorais. Os ataques contra a Petrobras, que acontecem invariavelmente às vésperas de cada eleição, atendem interesses das grandes empresas petroleiras, especialmente as americanas, que querem a volta do velho e bom sistema de concessões na exploração dos campos de petróleo, sistema que, na opinião delas, deveria ser extensivo às reservas do pré-sal. Aqui o interesse chega na casa do trilhão. Garantir que o uso da riqueza proveniente da exploração de nossos recursos não-renováveis tenha critérios sociais, definidos por governantes eleitos, me parece uma ideia excelente da qual o país não deveria abrir mão.
Voto contra o poder crescente das religiões sobre a vida civil. Respeito inteiramente a fé e a religião de cada um, gosto de muitos aspectos de várias religiões, sei do importante trabalho social de várias igrejas, mas não aceito o uso de argumentos ou critérios religiosos na administração pública. Mesmo para os que professam alguma fé religiosa a divisão entre os poderes da terra e do céu deveria ser clara. Diz a Bíblia, em Eclesiástico, XV, 14: “Deus criou o homem e o entregou ao poder de sua própria decisão”. (Esta é a versão grega, a versão latina fala em “de sua própria inclinação” ou “ao seu próprio juízo”.) Erasmo faz uma boa síntese desta ideia: “Deus criou o livre-arbítrio”. Ele, se nos criou a sua imagem e semelhança e criou também as árvores, haveria de imaginar que, criadores como ele, criaríamos o serrote, e com ele cadeiras, mesas e casas, e ainda, Deus queira!, a ciência que nos permita usar com sabedoria os recursos naturais e viver bem, com saúde. O poder crescente das igrejas, com suas tevês e bancadas no congresso, deve ser contido por um estado laico. [...]
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