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21 abril, 2011

Fazendo artes



por Fernando Gurgel Filho

Faz muito tempo, mas parece que foi ontem.
A atmosfera ditatorial da casa paterna no interior do Ceará estava obrigando Nonato a dar um grito de independência. Nem que fosse apenas geográfica, pois independência financeira àquelas alturas era quase impossível. Ele queria, a todo custo, estudar e morar em Ouro Preto, respirando ares de liberdade, fazendo seu curso superior longe de casa - nem era tão longe assim, né? Afinal de contas, Minas Gerais é bem aliii... -, morando em uma daquelas repúblicas com nome estranho. O resto, pensava, viria por acréscimo: muita farra, meninas pra namorar... Muita liberdade, enfim.
Nonato passou alguns semestres fazendo vestibular. Já estava até acostumado com a gozação dos amigos. Diziam que o MEC ia reconhecer sua graduação em pré-vestibular e dar-lhe um diploma por insistência.
Demorou, mas foi aprovado e seu pai ainda não sabia o curso que Nonato pretendia fazer. Pagava o cursinho e pegava no pé do filho quando saía a lista e o nome do jovem não constava. Ele não encontrou o nome na lista nem no ano em que Nonato passou, pois procurava sempre em Geologia e ele queria cursar Artes. Bom, passou, comemorou, quase apanhou, matriculou-se e depois mudou pra cidade que escolheu, pra fazer o curso que escolheu e morar na república que escolheu.
Logo estava totalmente adaptado à cidade. Às vezes, sentia que a cidade é que não estava perfeitamente adaptada a ele, mas ia levando numa boa. E as namoradas sempre ajudavam a diminuir a saudade de casa. Achava até que a namorada atual era a dos seus sonhos. Estava apaixonado.
Numa dessas comemorações da Inconfidência, Nonato, a namorada e uns colegas resolveram encenar um Auto da Inconfidência em praça pública, escrito pela turma. E quem seria o Tiradentes? Um doce pra quem adivinhar!!! Pois é. A satisfação de Nonato não tinha limites.
Apesar de serem apenas estudantes, queriam fazer trabalho de profissionais. Fizeram pesquisa histórica, de costumes, desenharam os figurinos, ensaiaram exaustivamente e, na véspera, estavam eufóricos. Brilhariam, sem dúvida.
Um pouco cansados, mas eufóricos, resolveram deixar as tensões no bar. Nonato quase deixou até o fígado. Ficou de porre.
No dia seguinte ainda estava meio ruim. Um pouco de febre, o corpo doído, parecia um começo de gripe forte. Tomou um comprimido e foi à luta, ou seja, à encenação do Auto.
Em palco descobriu que não era gripe. O tira-gosto da véspera estava fazendo-o passar por um processo de degradação acelerada. De dentro pra fora. Manteve-se firme, tentando honrar o nome que encarnava na peça.
Ouro Preto nunca viu um Tiradentes tão convincente, pois Nonato suava muito quando preso e quase desmaiou na conclusão do julgamento. A face contorcida era a imagem perfeita do sofrimento do mártir.
Na cena do enforcamento, centro da praça, o vulto de Tiradentes estava sublime na agonia de Nonato. No Auto, por força dramática, Tiradentes ia ser beijado por uma jovem da multidão antes de colocarem-no na forca. A namorada de Nonato fazia o papel da jovem.
Tiradentes, ali, imóvel, suando frio, com as vísceras já antecipando a dor do enforcamento. E ela subindo ao tablado, linda, emocionada... Abraçou-o com força e deu-lhe um beijo na face lívida. Colocou a mão na boca e, em seguida, no nariz. Desceu correndo, levando toda a dignidade do herói. Não dava pra enforcar Tiradentes daquele jeito. Nonato acabara de borrar a túnica e o chão do cadafalso.

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