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21 fevereiro, 2011

Sertão religioso

Sertão religioso
Não pense que é valentia
Ir da seca à inundação,
Rezando em cantoria,
Atrás desta procissão.
Chuva na roça é alforria
Enxurrada é destruição.
Que o santo não se zangue
Co'essa nossa ''pidição'',
Mande a chuva pedida
Não traga o mar pro sertão.

Por Fernando Gurgel Filho (de Brasília)

Nossa gente é tão dura quanto.
Veja a história abaixo. Escrevi após ouvir o relato de um amigo piauiense, sobre episódio que aconteceu com seu avô, lá no sertão do Piauí:
O ser humano, diante da natureza, sempre se sentiu pequeno, amedrontado, mas nunca desistiu de tentar domá-la. Assim, não se sabe se o medo, a inteligência ou a crença, fez com que essa criatura tão indefesa conseguisse sobreviver e multiplicar em toda a superfície da mãe Terra. Mesmo nos lugares mais improváveis.
Para mim, este talvez seja o maior milagre visto pelo próprio ser humano. E talvez explique porque existe uma parcela imensa da humanidade que manifesta fé inabalável em seres que julga estarem ali para servi-la em situações extremas. São recorrentes os casos em que a crença operou algo no ser humano, ou em torno de si, que modificou condições tidas como impossíveis.
Seu Doca está aí, vivinho, para não me deixar mentir.
Homem rude do sertão nordestino, não precisa dessas explicações inúteis. Ele acredita e pode contar seu milagre. Que tanto pode ser uma bênção, como um castigo.
Apesar do apelido quase doce - “Seu Doca” - trata-se do verdadeiro estereótipo de sertanejo: pouco ri, pouco fala, mas quando ri ou fala parece ter muita sabedoria; não chora nunca, não se enternece com nada, faz chorar e enternecer os familiares; não adoece e não para de trabalhar por nada no mundo; e sabe das coisas da natureza como ninguém.
Naqueles dias de seca, Seu Doca andava muito nervoso. A mulher se preocupava. Mesmo sem falar nada, sem manifestar suas preocupações, ele ficava mais calado, parecia que bufava ao invés de suspirar profundo e dormia menos do que de costume.
Na roça, parava de trabalhar e ficava olhando para o céu azul e o sol de fogo. Às vezes como a pedir clemência, no mais das vezes com um olhar desafiador, como a dizer: “o que fiz pra merecer isso?”. E as plantas secavam, os animais definhavam e a família quase não tinha água para beber ou cozinhar.
Seu Doca não era de rezar. A mulher dele rezava pela família toda. Ela participava das novenas e das penitências para trazer chuvas e fartura. Nas procissões era a mais fervorosa e a mais próxima do andor de São José ou de Santo Antônio, santo de sua devoção e padroeiro do lugar.
Porém, naquele ano e no anterior, os santos esqueceram que o sertão precisava de água para sobreviver. Não caía uma gota sequer. Passava tempos e tempos sem uma nuvem no céu e quando nublava, lá longe no horizonte, era apenas para soprar as cinzas do fogo da esperança que estava quase apagando. Soprava, avivava a brasa e ia embora. Não chovia nada.
Um dia, sozinho em casa, Seu Doca tomou uma decisão corajosa: se os santos não escutavam as preces de sua esposa, haviam de escutar uns desaforos de homem para homem.
Sol quente do meio-dia, pegou a imagem de Santo Antônio, tão luzidia e bela sobre a toalha branca do oratório, se dirigiu à roça e, no final da cerca, colocou a imagem sobre o mourão mais grosso, no sol a pino, e sentenciou:
- Vamu vê se tu é forte! Inquanto num chuvê, cê num sai daí... Vai torá no sol! Intonce, trate de mandá chuva!
Coincidência, castigo ou bênção, à noite os relâmpagos iluminaram os campos, os trovões estremeceram a casa e a água despencou do céu como uma cachoeira gigante. De tão exagerada a chuva, dizem que choveu a noite toda sem parar.
Ninguém sabe se Seu Doca teve algum estremecimento de temor ou agradecimento, pois não viram nenhuma grande mudança em suas faces. De manhã mostrava apenas um olhar mais aceso. Foi para a roça parecendo mais animado com aquele ar fresco e úmido:
- Agora temu água, muié!, falou ao sair de casa.
Andando, viu o estrago que o aguaceiro causou. A roça foi destruída pela enxurrada e os animais dispersos pela violência das águas. Alguns ficaram feridos. Grande parte da cerca tinha sido levada também. O mourão forte e grosso onde estava Santo Antônio tinha resistido. E o santo estava lá, sereno como se nada tivesse acontecido.
Seu Doca, de repente, sentiu-se frágil ao ver tanta destruição. Sentou numa pedra em frente e chorou um pranto que o sertão nunca vira desde que ele nasceu.
E os céus fizeram-lhe coro com as águas que voltaram a cair com força, inundando a propriedade e a alma do sertanejo. FGF

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