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10 junho, 2010

Maridos cruéis, mulheres apaixonadas


Nelson José Cunha

Costumava deitar-me no velho tapete arraiolo da sala de minha avó e ficar observando os retratos de família nas paredes da sala. Dentre eles, havia um instantâneo, que talvez por isso, revelava a alma dos figurantes. Os demais não passavam de fotos retocadas, feitas em estúdio, que nada mostravam além do capricho do retoquista. A estes não poderia chamá-los de verdadeiros retratos. Na fotografia, que me chamava a atenção, via-se o meu avô Nicolau, garboso, em terno branco e chapéu displicente, caminhando indiferente ao fotógrafo. Minha avó, segurando-lhe o braço, também impecável num tailleur justo valorizando-lhe ancas e pernas, vestia à moda dos anos trinta. Os olhos grandes, apartados por um nariz semita, fixavam, ameaçadores, a câmara indiscreta como se recriminassem a ousadia do fotógrafo pela quebra do idílio dos amantes.
Era comum, naquele tempo, ver esses profissionais, nas avenidas centrais do Rio de Janeiro espocando flashes em quem passava com aparência de turista. Com o tempo, fui conhecendo as histórias daquelas duas figuras e compreendendo melhor o flagrante retido em prata. O retrato conseguia ser o resumo das duas vidas, captando-lhes a essência por trás das imagens amareladas impressas em papel velho. Ele, indiferente, parecia curtir o passeio não lhe importando o mundo à sua volta. Ela, ligada às coisas mais terrenas, apertava o braço do marido para que este não lhe escapasse. Com o olhar incisivo fuzilava o fotógrafo como se dissesse: - ele é só meu, ninguém vai tirá-lo de mim. Minha avó era assim, possessiva. Tinha um afeto que não conhecia os limites civilizados.

Não conheci meu avô, morreu meses antes do casamento da minha mãe. O que sei, são contas esparsas recolhidas por mim nas conversas com parentes ou garimpadas em raras confidências ouvidas de minha avó. Se pudesse descrevê-lo em uma só palavra diria que era um bon vivant. Levava a vida entre rodadas: de cartas e de saias. Sua principal ferramenta de trabalho era a palavra. Com ela, blefava no pôquer e abria corações femininos. Desmoralizava o adágio popular ao demonstrar igual competência no jogo e no amor. Minha avó não lhe resistia aos numerosos pedidos de perdão, que funcionavam mais como juras de amor do que arrependimentos sinceros. Ele era um mestre na arte de seduzir para reinar.
Ela escorava-lhe a retaguarda, pagando-lhe as dívidas de jogo quando as cartas ficavam magras. De quebra, ainda infernizava a vida das rivais, plantando armadilhas para deixá-las em desvantagem na corrida pelo seu amado. Manipulava os cordéis da intriga com inigualável competência fazendo-as dançar fora do compasso. Praticava ainda a arte da prestidigitação escondendo das filhas e da sociedade ouropretana os vexames do seu Antônio Nicolau. Vovó tinha o seu próprio bolso e não dependia do marido. Fazia os seus mil réis no restaurante da rua São José, o "Café Primor". As filhas, já moças, acompanhavam o oficio revezando-se entre a cozinha e o balcão. Dona Maria Roque era mulher obstinada e sua ferocidade só podia ser manobrada por Antônio Nicolau, que o fazia de forma magistral.
Viviam felizes à sua maneira, porque um amor daqueles não respondia a nenhuma análise racional. Qualquer tentativa de compreendê-los seria inútil.
Por esta vida, conheci muitas mulheres apaixonadas por homens assim. Homens que sabiam dosar o sofrimento imposto às suas amadas como alquimistas especializados no elixir do amor. Mestres-cucas conhecedores da química feminina, pois sabiam acertar a mão na dose exata do morder e do soprar. São ardilosos dominadores que as mulheres amam e passam a não saber viver sem o seu veneno. Para eles nada é mais fácil de conduzir do que uma mulher apaixonada. A paixão é um capuz que lhes entorpece a razão, fazendo-as dóceis montarias na cama e na vida. Que estranha atração é essa de mulheres deslumbradas por homens que as fazem sofrer? Amantes com ar blasé, que as deixam loucas ao fazerem da ameaça de deixá-las, o poderoso atrativo. Uma espécie de ciúme adesivo ligando-as ao amor bandido. Homens-aranha que constroem teias bem urdidas com marcas, cheiros, bilhetes apaixonados esquecidos de propósito no bolso da calça, fazendo brotar o fogo do ciúme que queima e arrebata. Já tive vontade de sugerir a um amigo, um tanto quadradão, que assumisse o tal modus operandi para não perder a esposa que ameaçava trocá-lo por um cafajeste. Não me atrevi a fazê-lo e o amigo perdeu a parada. A estratégia seria vestir o disfarce de um malandro para prender a mulher junto de si. São mulheres atraídas pela aventura, entediadas pela vida certinha e dispostas a lançarem-se no abismo apenas para sentir o calafrio da queda. São as devotas da emoção e inimigas da razão. Para essas mulheres vale mais o romance mesmo que falso. Os homens, neste particular, são por natureza mais racionais e não entendem como as mulheres podem ser felizes ao lado de cafajestes. O sofrimento e a dor estão intimamente ligados ao prazer e ao amor. Parece ser natural a atração da mulher pelo martírio, gemido, toda forma de sofrimento auto-imposto e, se isto for verdade, não há o que fazer, pois é a essência do que é ser feminino. A felicidade no amor é prato de muitas receitas, o salgado é o doce e este é o amargo. Gostaria de entender sobre o amor, mas ele não foi feito para ser compreendido. Está aí para ser saboreado como uma sopa que desconhecemos o seu conteúdo. É meter a colher, fechar os olhos, sentir-lhe o sabor de coisa boa e lambuzar-se até a última gota.

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