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10 janeiro, 2010

Ciência poética

Nelson José Cunha (*)
Deitado na grama contemplo o céu repleto de brilhos faiscando na noite orvalhada e fria. São muitos astros a disputarem lugar no firmamento enquanto não chega o sol de amanhã. Cheiros mesclados de estrume e jasmim, músicas que não decifro se de cigarra, sapo, grilo ou vindas mesmo de mim. Olhar o horizonte é estabelecer limites aos olhos, mas ver o céu é libertá-los para escrutinar o passado remoto, posto que esses lampejos são de estrelas que nem existem mais. A luz foi feita para viajar e assim me chegam cansados, milhões de anos depois, esses brilhos órfãos para aqui ficarem sepultados. Não fizeram a viagem em vão, deram-me o prazer de reconhecer belezas em simples fiapos de estrela.

O nascimento do planeta Vida
O universo já foi energia pura que se fez matéria na forma de hidrogênio, o mais simples dos elementos. O aglomerado desses gases produziu gravidade que os juntou e aqueceu como fazem os amantes nas noites frias. Enroscaram-se e pariram um átomo de hélio. E assim foram criados todos os elementos conhecidos, dos mais leves ao mais pesado, o urânio de injusta fama. Só mesmo no interior de estrelas mil vezes maiores do que o Sol poderiam nascer átomos tão variados que dessem cabo da monstruosa tarefa de construir a grande novidades que, neste quintal solar, chamaremos de VIDA. O universo inaugurou os corpos que fazem corpos, que de simples se fazem complexos e de tão complexos se fazem inteligentes e daí pensam, inventam, elaboram, refletem até merejar como faço agora só de pensar que mereci o prêmio de viver e compreender. Oh! Bendita evolução que nos fez sua jóia. Quanto privilégio recebi de graça por ser alguém capaz de ao olhar um céu estrelado molhar o sorriso com lágrimas escorridas. Nesses momentos deixo de ser carne para ser espírito. Algo que fecha os olhos para ver o invisível, para crer no incrível, para poder o impossível. Seres mudos que declamam toda poesia possível.
Somos matéria velha, feitos essencialmente de poeira das estrelas, carbono para ser mais exato, assim como os diamantes, mas diferentes deles porque nosso brilho é próprio. Brilhamos quando sorrimos, quando trinamos para um passarinho, quando afagamos um cão da coxia e salvamos a formiga do afogamento na pia. Somos astros assim!

O nascimento do homem
O sistema solar surgiu da explosão de um aglomerado estelar gigantesco com massa de 100 sóis. A gravidade nesses astros é tão poderosa que os destrói numa explosão monumental: A Supernova. Os detritos desse cataclismo organizam-se em sóis, planetas, alguns gasosos, outros rochosos como a Terra. Pois foi neste planeta que deveria se chamar planeta Vida, que surgiram há 3,5 bilhões de anos as primeiras moléculas replicantes chamadas de RNA primordial. Uma molécula capaz de fazer cópia de si mesma. A sucessão de cópias mutantes teve vida longa e atribulada, esteve muitas vezes à beira do extinção, mas venceu catástrofes e terminou num berçário entre choros, fezes e gritos de alegria: nascemos para contar essa historia.

A tristeza e as religiões
Vagando pelo lirismo alcanço este parágrafo para abordar a tristeza humana. A sensação de insignificância e inutilidade que nos acomete, às vezes. A tristeza a que me refiro não é aquela passageira quando perde o trem um passageiro. Tampouco a doença depressiva, sublevação química que por vezes, pode ser vencida com a espada da vontade. Falo da crônica insatisfação desses dias em que na falta da compreensão existencial, busca-se a fortuna. Uma riqueza que nem os ricos sabem onde está porque continuam a buscá-la crendo-a dinheiro até que a morte os apanhe sem encontrá-la. É certo que o dinheiro quase tudo pode, só não compra a satisfação de ser manso. Essa paz o dinheiro não compra porque traz com ele o virus da cobiça. O desejo assim inoculado é um dragão de estômago aberto para o vazio, não há banquete capaz de atendê-lo. O desejo é como a fome, repete-se ao meio-dia.
A tristeza epidêmica que nos aflige é o vazio existencial que nos faz abraçar religiões na busca de respostas à pergunta de todas as horas: Para que estamos aqui? As religiões oferecem amontoados de fábulas e mitos que derespeitam a inteligência humana, são mais apropriadas aos livros infantis. Desculpem-me os que têm fé, reconheço que minha afirmação pode ser tomada como desrespeitosa aos crentes, mas prefiro ser honesto a ser só educado. Também sou atrevido e pretensioso ao responder à pergunta sobre as razões da nossa existência. Melhor fazer afirmações que poderão se mostrar ridículas do que viver em estado de covardia. Somos hoje o que foram a minúscula alga ou o invertebrado que nos deu origem. Somos um elo da corrente evolucionária, somos incríveis, mas não somos o produto final. Maravilhosa espécie, sobre humana, haverá de vir séculos à frente. Dentro de cinqüenta anos seremos os segundos em inteligência. A inteligência se retro-alimentará e a progressão será exponencial. Isso tudo se não destruirmos essa casca ferida que nos acolhe: A atmosfera. A camada de gases onde vivemos tem a espessura da casca de uma maçã se fizermos a devida proporção. Sejamos gentis com ela.

Satisfação de ser gente
Foi necessário vencer uma corrida em meandros, com milhares de outros espermatozóides para fecundar um óvulo solitário e pouco esperançoso. Quase sempre desistem de esperar e terminam como os gametas masculinos tímidos, esquecidos num balde qualquer. Alegremo-nos pois somos filhos de uma célula valente com outra perseverante. Haverá melhor forma de começar uma vida? O segundo passo dessa célula flagelada, atlética e haplóide (sig: contem só metade dos cromossomos) foi germinar, entregar sua biblioteca de genes e agarrar-se com todas as forças ao óvulo hospedeiro para reclamar seu quinhão no corpo que se deixa, com amor, parasitar.
Nascer é o coroamento de uma epopéia de grandes riscos. Poderíamos ter nascido efêmeras, insetos de vinte horas de vida. Nascemos gente, capazes de sentir o cheiro da dama da noite, de pasmar diante de um pássaro alimentando filhotes, de rir de uma piada maliciosa, de gozar um acorde de Beethoven, de enfiar a boca numa melancia, de se aproveitar de uma mulher no cio, de acariciar um filho e de pular pelado num rio.
Não importa se não sou capaz de prodígios, mas me alegra reconhecê-los nos outros: A racionalidade de Einstein, a engenhosidade de Leonardo da Vinci, o humor de Cervantes, a musica de Bach, a retórica de Shakespeare e o lirismo do genial Rimbaud (imagem) que aos dezesseis anos descreveu a morte com esta beleza ("Poema do soldado morto"). Como descreveria a vida?

"É um vão de verdura onde um riacho canta
A espalhar pelas ervas farrapos de prata
Como se delirasse, e o sol da montanha
Num espumar de raios seu clarão desata.

Jovem soldado, boca aberta, a testa nua,
Banhando a nuca em frescas águas azuis,
Dorme estendido e ali sobre a relva flutua,
Frágil, no leito verde onde chove luz.

Com os pés entre os lírios, sorri mansamente
Como sorri no sono um menino doente.
Embala-o, natureza, aquece-o, ele tem frio.

E já não sente o odor das flores, o macio
Da relva. Adormecido, a mão sobre o peito,
Tem dois furos vermelhos do lado direito."

Estamos sós?
Haverá neste céu que agora fito alguém com essa mesma dúvida? Não há indícios da existência de vida inteligente em outros lugares. Talvez sejamos únicos. A ser verdade essa suspeita, imaginem o tamanho da nossa responsabilidade! Únicos seres inteligentes em todo o Universo.
Não foi fácil chegar até aqui, muito se perdeu antes que acertassem a receita. Não faremos justiça aos tempos passados se dermos abrigo a tristeza existencial que nos incomoda. Podemos ser felizes só por ser gente.
Temos dívidas com o passado que abriu o caminho. Temos obrigações mais do que demandas e não nos custa acariciar a natureza apedrejada, parar de envenenar nossos corpos e aprendermos a dizer obrigado.

(*) O autor se formou em medicina pela Universidade Federal do Ceará em 1971. Reside em João Monlevade - MG, onde é médico oftalmologista. Escreveu esta belíssima crônica após ver o vídeo "Sinfonia da ciência", recentemente postado no blog.

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