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17 dezembro, 2009

Seis de setembro, seu aniversário

Nelson José Cunha(*)

Já me doíam as costas pelas horas de espera. As mãos inquietas e frias queriam escapulir do corpo e junto delas o coração. Tudo para evitar o confronto iminente da aflição com a alegria. Nossa alma vive em permanente conflito e a vida a nos cobrar decisões. O corpo também é nação desunida, se uma parte quer a outra evita, e assim seguimos divididos.Aliviei a cadeira do peso e da espera e fui experimentar o sol de fora e de setembro. Eram seis os dias do mês e as últimas lufadas de vento frio vinham despedir-se do inverno de 1976. Lá fora um jardim adornava o hospital. Mais rosas do que margaridas, mas eram estas que emprestavam o nome à Instituição – Hospital Margarida (na imagem). Escolhi um canteiro para roubar-lhe uma rosa defendida por placa de proibido. Coitada da lei que proíbe a rosa de enfeitar a alegria de um pai orgulhoso: engrossará o rol das leis descumpridas. Era a melhor hora do dia e o sol acabava de vencer a herança fria da madrugada. As rosas agradecidas flertavam com seus beija-flores e maltratavam os botões com a arma surda da inveja.

Esperem, botões de rosa! Chegará o dia de mostrarem suas roupas de festa. Aproveitem a sua juventude de botões e logo viverão os esplendores das rosas. Saibam que é melhor a expectativa do que o baile, melhor o aroma do que o melão.
Também estou aqui impaciente, à espera de um botão prestes a desabrochar!


Escolhi a rosa mais bonita e livrei-a do seu cabo, mas o arrancado da excitação fui eu, um pai principiante.


- Nelson ! É homem, é normal, dêcá um abraço!

Meu sempre amigo Aloísio chegava esbaforido com a notícia.
Pediatra e meu compadre, esbanjava um sorriso assim de grande: (HHHHHHHHHH), caberia em duas caras de gente. Livrei-me do seu abraço porque não há pais aflitos e educados ao mesmo tempo e corri para ver o meu nascido. Não quero pecar contra a exatidão - quem flutua de alegria não corre, melhor dizê-lo, voa, e voei para o quarto de Conchita para encontrar a trouxa de menino. Abri o pacote com sofreguidão e lá dentro estava um rapazinho completo e grande - do pé ao saco, da boca ao grito. Era um patola de menino.

A mãe, esquecida das dores recentes, com meia boca chorava e com ela inteira sorria. Tinha os olhos enfiados nos panos que eu removia e de onde desabrochava um menino cuja cara já se conhecia: Veio um pé, depois o outro, pernas e braços gordos com dobrinhas, o tubinho do xixi sobre duas ensacadas bolinhas e a barriga marcada pelo umbigo enrabichado. Só faltava um carimbo no peito:


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Menino Perfeito
Made in Brazil
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A mãe então exclamou para si e para todos, sem os escrúpulos da modéstia e num espanhol de nascença:


- Qué precioso éres mi niño! Qué fuerte!
No me lo imaginaba tan hermoso!

A mão tremia ao tocá-lo, fazia-o com toque de penugem, examinava-o à lente para descobrir imperfeições que não haviam, só saúde, beleza e fome, fome de leite e de carinho: legítima fome de gente.


- Deixe estar Conchita! Nosso menino veio sem reparos,
agora é meter-lhe todo o leite que queira e depois limpá-lo
do mau perfume dos seus efeitos.

Estava entregue ao mundo a encomenda. Veio conforme o pedido, sem defeitos ou escoriações. Venceu, o menino, a primeira jornada de riscos de uma natureza que, às vezes, prega peças e entrega bebês incompletos. O nosso, como vencedor, teria que se chamar Victor e assim ficou como primeiro nome, depois lhe penduramos um bico, um chocalho e um sobrenome: Lupiañez da Cunha, para que o cartório lhe enfiasse completo no livro dos cidadãos. Está lá, à espera de que outros meninos venham repetir-lhe o sobrenome.
Foi esse o capítulo primeiro da história de uma vida começada com a alegria de um nascimento. Fazer meninos e nascê-los é fácil, conduzi-los pelos caminhos certos da vida é caminhar de joelhos numa estrada de pedrinhas, começam raros seixos rolados e terminam numerosas e pontiagudas. Não se sabe se é melhor tê-los e sofrê-los ou esconder-se da cegonha. Nessa arena o destino é mestre em desmoralizar os sonhos paternos, mais por culpa destes por agigantarem expectativas quase sempre cevadas pelo amor. O amor quando não é cego tem olhos feridos, vê sempre a parte sadia de tudo. Há filhos adoráveis que bendizem o nascimento e outros que são simplesmente filhos e destes não falo e não digo. Digam os outros dos seus maus filhos.


Tal sucedeu, meu querido primogênito, hoje é dia do seu aniversário, da sua estreia nesse mundo que, feito para ser adorável, não o é tanto assim por culpa dos vivos - aos mortos não adianta mais imputá-los. Melhore o mundo fazendo da vida que lhe demos a melhor para si e para os outros.
Essa lembrança comovida aplica-se aos meus Henrique, Diego e Julia que produziram em mim o mesmo deslumbrante efeito, e se não estão aqui nomeados é pelo ataque de modéstia que me acomete justamente agora ao concluir o texto. Vocês foram igualmente formosos e tinham os mesmos atributos de homens, exceto Julinha que o ciúme de pai não me permite descrevê-la despida. Ela não foi rosada como os outros, puxou a morenice do pai e da avó, mas foi e continua sendo a morena rosa da família.
Atenção marmanjos: Essa Júlia, morena flor, não leva placa de proibida, mas não se atrevam a arrancá-la desta casa!

(*) Num seis de setembro em que o filho mais velho, Victor, estava a aniversariar, Nelson se recordou das deslumbrantes sensações que teve quando se transformou em pai. E que se repetiram com relação aos filhos Henrique, Diego e Julia. É um primor de crônica deste meu colega, que é oftalmologista em João Monlevade - MG. PGCS

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