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15 maio, 2009

O pacto

"Cervantes não matou a cavalaria.
- Matou uma forma de cavalaria." 
Monteiro Lobato

Num albergue postado no caminho de Málaga achavam-se dois cavaleiros andantes. Era sexta-feira, dia em que os paladinos não andavam à cata de aventuras, porque nesse dia da semana descansavam os mouros. Sem mouros com que pelejar, não havia muito o que fazer. Só pernas pro ar, que de ferro já bastava a armadura de cada um.
Damiano e Cosmião chamavam-se. Formavam uma dupla inseparável, na base do "só-vou-à-liça-se-você-for" (mesmo porque o rocim era único). Batendo-se contra o inimigo comum, Damiano se expunha para proteger Cosmião; este, por sua vez, não ficava atrás e fazia o mesmo com relação a Damiano. A única - e não honrosa - exceção foi quando tiveram pela frente Conan, o Bárbaro. E isto porque nossos herois ficaram escondidinhos como lagartos. Em duas palavras, deu Itararé.
O bate-papo estava assaz medieval, quando Cosmião introduziu uma ideia caprichosa. Mudando do vinho para a água, como observou um aldeão que depois virou mosto. Cosmião, a voz estentórea para que o amigo bem o ouvisse, falou:
- Nossa amizade, ó Damiano, não padece dúvida. Contudo, deveríamos vitalizá-la através de algo assim como... um pacto de sangue.
- De onde tiraste tal ideia, amigo Cosmião?
- Bem... alhures, os cavaleiros leais assim procedem.
- Ora, o rosário de nossas pelejas contra meio mundo já é a prova cabal da lealdade de um para com o outro. Então, para que o pacto de sangue?
Pequeno desencontros entre os dois amigos por vezes ocorriam. Mas que eram resolvidos com uma curta oração do "Breviário do Cavaleiro Andante", que um puxava e que o outro respondia:
- Cada um quer dar a vida pelo outro.
- Só não o conseguindo pela incompetência dos adversários.
- Amém. 
Até que houve a aquiescência de Damiano. Afinal, o rito de sangue proposto por Damião não era algo completamente esquipático. Para quem já se encontrava na "ônzima" caneca de vinho, minha senhora, pelo menos não era.
E Cosmião fez o celebrante:
- Vê, Damiano, coloquei minha mão sobre a távola. Agora, com a palma de tua mão cobre o dorso da minha para que, em seguida, eu as transfixe com o punhal. O sangue ao correr selará a nossa eterna amizade. Ou vais correr tu?
Damiano não correu. Porém, não suportou bem ver o "sangue do seu sangue" a correr da mão cravada pela lâmina. E fez uma séria acusação contra o amigo: que Cosmião agira em benefício próprio, botando a mão a jusante para pegar menos punhal. Mas isto não tem a menor influência, torquiu Cosmião, tem, retorquiu Damiano. Nesse tem-não-tem, Cosmião acionou o punhal novamente. Só que, desta vez, no coração do pobre Damiano.
Morto Damiano, Cosmião deu às de vila-diogo. E passou a vaguear pelas faldas de Sierra Nevada. A mão ferida, pensada com unguentos de rosmaninho, sarou logo. Mas... o que são os desígnios das Fúrias (as deusas romanas da Vingança), minha atenta senhora. Algum tempo depois, o errante cavaleiro Cosmião adoentou e morreu. De icterícia catarral, um mal a ver com o sangue do pacto.
Publiquei esse meu conto no DN - CULTURA em 1987.

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